A casa

No dia em qua cheguei para conhecê-la, parecia apenas um imenso corredor vazio e azulejado, cheio de teias de aranha, orações coladas em todas as portas e um quintal quase morto. Sapotizeiro imenso de sombra suave e uma imensa roseira que era a promessa de alguma primavera futura e doce. E eu via nela a possibilidade de um sem número de plantas espalhadas em cada canto e uma alegria solar. “Vamos ficar nessa, por favor, vamos!!”, minha insistência infantil ecoava nos cômodos vazios e empoeirados.

Em poucos meses, era finalmente uma casa. Sua fachada ocupava poucos metros na minha avenida favorita da cidade. Avenida de imensos oitizeiros velhinhos que desemboca no rio que margeia minha vida há mais de uma década. Parede branca de entrada, jeitão de casa de meados do século passado, que só de olhá-la ali se erguendo no meio da bagunça da cidade se pode intuir que guarda muita memória perdida, história alheia e cheiros engraçados. Casa de avó, que avança imensa até quase o final do quarteirão.

O corredor, com o passar dos dias, se povoou de plantas, de gato e de gentes, de música, risadas e sonhos, trabalho, conversas, livros, café cheirando na cozinha e uma cuia de mate. Os cômodos vazios se transformaram em salas, quartos, banheiros, ateliês, uma cozinha e o milagre de um quintal, escondido, segredo, existindo no meio da cidade como uma última resistência possível ao concreto e ao fim de tudo.

Foi só abrir a casa, janelas e portas, os ventos tomaram conta de tudo. Era sempre março lá em casa. O vento a tirar do lugar papeis e os tecidos mais leves, mexendo em todos os cantos, fazendo cantar tudo quanto era mensageiro pendurado pelos corredores e janelas, trazendo sempre o cheiro do rio de água salobra que se misturava com os cheiros mesmos da casa. Cheiro de planta, dos temperos mais exóticos e saborosos, de incenso, vela queimada, flores novas, rosas e jasmins, banho de ervas, água de chuva, terra prenha, sabão de coco, roupa recém-lavada, comida no fogo, fruta madura.

Vez por outra tinha o barulho matinal de uma máquina de costura, tempo exato do bater de um coração, tecendo as memórias de amanhã e acordando minhas lembranças mais infantis. O som contínuo e reto que se misturava com o canto dos sábias-laranjeiras e dos bem-te-vi no fundo do quintal. Teve até o dia em que eu, renascendo o que nunca foi meu, me meti naquele quartinho miúdo e abafado, cheio de quimeras e retalhos, e fiz roncar uma das máquinas adormecidas. O estranhamento dos pedais e das linhas nunca retas, sempre diagonais, com o acolhimento da mais paciente de todas as professoras. E uma risadaria estridente e infinda, de meninas brincando de aprender e ensinar.

Houve também os dias em que o quintal se transformou numa imensa oficina realizando os sonhos mais bonitos e tantas invenções para dominar o mundo. Serra, serrote, madeira, cacarecos encontrado na rua que foram ganhando novas utilidades, marcos de serigrafia, composteiras, vasos de plantas. E horas e horas de um lento cuidar de tantas plantas espalhadas pelos canteiros e pelos vasos.

Foram também muitas aulas de culinária. Pela manhã tinha suco verde cheio de amor e carinho encima da mesa, esperando que cada um saísse de seus quartos sonolentos. Tinha as conversas matinais com mate ou café, preguiçosas, recheadas de sonhos noturnos e bobagens que só criança entende. A mágica da casa era nos transformar a todos em crianças de três anos. E teve o dia dos gnocchis em que eu quase destruí a cozinha e não consegui enrolar um gnocchi sequer.

Tinha o meu quarto, meu canto, uma mentirinha que eu contei, era o silêncio de janelas abertas para um lindo jasmineiro em pleno centro caótico da cidade. Eu mentia que era uma casa de minha infância, uma casa no interior, cercada de calma e cantos de pássaros, chuva batendo no vidro da janela, vento cantando todas as horas do dia e as traças quase se apoderando de nossas vidas. Era minha ilha de calmaria.

A casa era toda feita de aprendizagens e ensinamentos, na verdade. Aprendi, por exemplo, a colocar roupa pra quarar, a matear sem nenhuma pressa, compostar e reutilizar um monte de coisas. Aprendi a difícil arte de dividir o espaço e a vida com outras pessoas, que embora não tenham laços sanguíneos, de alguma secreta maneira também se tornam família e, por isso mesmo, ama-se e odeia-se a cada dia e, principalmente, ri-se de tudo, ao final. Sentirei saudades. Da casa e de seus habitantes reais e encantados. Foi um sonho bom.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
Comentários

Nós usamos cookies para melhorar a sua experiência em nosso portal. Ao clicar em concordar, você estará de acordo com o uso conforme descrito em nossa Política de Privacidade. Concordar Leia mais