A cidade

“E então, o que você achou da cidade? Em uma frase!”

Assim, tiro a queima roupa. Gaguejei. Minha amiga e cicerone queria, afinal, saber o que achei de sua cidade natal. Conheci a cidade como se morasse nela, vi seus pontos turísticos pela janela do ônibus, enquanto íamos para outros lugares, para viver a vida. Disse-lhe que tinha uma visão pouco turística daquelas ruas, daquelas gentes, que vi – e vivi – tudo pelos olhos de quem mora, de quem vive, de quem ama a cidade. Sorriu, entendendo minhas voltas, “você não respondeu minha pergunta! Está tentando me enrolar!”. Tentava ganhar tempo, mas fui descoberta. Impossível falar de uma cidade numa frase.

Vivi a cidade que não se compra e não se vende, a cidade que não está nas fotos turísticas, que não se enfeita de si para estrangeiro ver. Vivi a cidade mais marginal, e mais poética, talvez. A cidade que resiste, eu a vi lutar; a cidade que resgata sua história enterrada, eu a vi cantar e tocar tambores; a cidade que se reinventa, eu a vi ensinar-se. Eu vi sua face mais bela, mas também conheci onde se esconde o que não se deve mostrar aos turistas: onde estão os que resistem, os que lutam dia após dia para que a cidade siga adiante.

Quando se anda assim pelas ruas de uma cidade, quando se vive seus dias e suas noites, se sente seus cheiros e cores, não é possível resumi-la ou contá-la com displicência. É que depois disso a cidade, ela mesma, se ergue em concreto e asfalto, árvores e pessoas, dentro do coração de quem a viveu. Maravilhamento de quem anda a pé, de quem não tem pressa, de quem não procura nada e vai encontrando tudo o que há no caminho. Construí a cidade com todas as suas casas e prédios, com suas gentes e histórias, seu rio e suas árvores, construí-a inteira dentro de mim para vivê-la.

Adoeci da cidade. Já disse aqui outra vez, que tenho um jeito exagerado de sentir, de adoecer o corpo quando a alma toca a beleza do inesperado, tive febre da cidade que nascia em mim. Quando nada se espera, todo acontecer é o inesperado. E sempre vejo beleza em tudo que vem sem ser esperado. A chuva, por exemplo, que desaba desesperada no meio da noite, derrama toda a cidade e atira pedras de gelo sobre o asfalto. A natureza segue furiosa, seja concreto, seja mato. E eu sigo de olhos abertos, sem dormir, olhando e sendo um pedaço da cidade.

Andar suas ruas e encontrar suas árvores, imensas, brotando sombras e frescor, sendo um bocado de vida no meio da escuridão asfáltica. Conhecer seus nomes, suas histórias, as que me negam e as que me são, conhecer os pássaros que as habitam e seus cantos. Reconhecer cantos e sorrir de puro contentamento. Passarinhar em cidade assim é mais fácil. Saí um dia a me perder por suas ruas e avenidas e passarinhar, cantar música de passarinho e encontrá-los, encontrar a alegria da resposta de um canto. Cidade com pássaro quase nem é cidade, mesmo sendo.

Cidade com parque tem ilhas verdes, artificiais ilhas que, ao menos, nos permitem botar o pé na terra, sentir o chão sendo macio sob os pés. E os olhos descansarem de tanto prédio e cinza, de tanto carro e asfalto. A gente descansa de cidade um pouquinho e respira fundo, desacelera, deixa o tempo passar sem pressa de nada fazer. Deixa o tempo passar, enquanto eu fico, observo. Deixa ir. Porque a cidade corre, corre sempre, para todos os lados, ela tem pressa de ser, de fazer, de existir, e eu, tão bicho do mato, meu tempo é outro, meu relógio anda lento. Meu existir, “rês desgarrada nessa multidão boiada andando a esmo”, é silencioso e pequeno.

E no silêncio, observar todos os personagens que a cidade me apresenta. O silêncio, perdoem, é menos pela língua estrangeira e mais pelo encantamento de ver. Para ver, com verdade e de forma profunda, é preciso estar em silêncio. Vendo, olhando os detalhes, os pequenos gestos e as palavras, risos e pausas, tentei aprender sua gente, aprender o jeito de ser, de viver e existir a cidade. A cidade não são os prédios e as casas, as coisas, a cidade são as pessoas, seus gestos e falas, seus sotaques e suas piadas, a forma como amam o futebol e como torcem apaixonadamente, a forma correta de xingar durante os jogos e de pedir o pão na padaria. Comi a cidade com os olhos e os ouvidos, aprendendo cada dia um pouco mais sobre ela.

Conhecê-la é também conversar com sua gente, ouvir suas histórias e aprender suas vidas cotidianas. Conversar aos poucos, devagar para não assustar a serpente que sustenta a cidade – sempre há uma, e antes de tudo, é preciso saber onde ela dorme, para não acordá-la desnecessariamente. Conhecer a história dos personagens que vivem e constroem a história da cidade. Não a história que vai parar nos livros, mas aquela que realmente importa, a do dia-a-dia, a que forja em fogo brando a alma da cidade. Me encantei de todos os personagens, amei todos e cada um, suas histórias e suas vidas, suas formas de sentir e ver o mundo.

Intrigada da vida que vi se desenrolar, fiz as perguntas mais estranhas aos amigos que me guiaram, que me acolheram em amor e compreensão. Como amam as pessoas? Como vivem? Como comem? Como se faz seus preferidos alimentos? Quais os sagrados gestos para realizá-las e quais as receitas ancestrais e intocáveis (sim, sou a fundamentalista das receitas!)? Como se tocam e como se dançam suas músicas (e ouvi-las e dançá-las)? Para onde correm seus rios? De que são feitos seus pássaros? Como se conta sua história? Perguntadeira, ouvi as respostas encantada de aprender a cidade.

E, claro, conhecer seus sabores. Ir até a feira, ouvir a melodia dos pregões que se gritam na rua, sentir seus aromas e conhecer as comidas das calçadas, conhecer seus doces e suas tradições. Compartir um mate quente e quilos e quilos de sorvetes, aprender uma ou duas receitas e compartilhar almoços, jantares, um cafezinho quente. A cidade nos encanta também pelo estômago.

A cidade que eu conheci, pois, é feita de pessoas lindas e amáveis e acolhedoras que me foram apresentadas pelos amigos queridos que me guiaram, feita de concreto e asfalto, habitada por personagens encantadores, cortada por parques verdes e um rio a beirá-lo, salpicada de árvores e pássaros e cantos, com músicas alegres para dançar, batidas de tambores e tristes músicas de amor ferido, uma cidade com futebol e mate, deliciosas comidas e doces, uma cidade que resiste e uma que se entrega, uma cidade que segue e uma que se queda parada. A cidade são muitas cidades. E elas me encantam. Un gusto, Buenos Aires.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
Comentários

Nós usamos cookies para melhorar a sua experiência em nosso portal. Ao clicar em concordar, você estará de acordo com o uso conforme descrito em nossa Política de Privacidade. Concordar Leia mais