A conversa e a leitura

São muitas as escrituras e muitas as oralidades encontradas na formação cultural do Brasil, algumas perfeitamente cotejáveis com Portugal e com a Europa culta do fim da Idade Média e dos primeiros tempos do Renascimento, outras de alguma forma originais, decorrentes das relações estabelecidas pelos colonizadores, apetrechados de produtores e difusores de textos, conforme regra antiga que estabelecia que “não se deve ler habitualmente aquilo que mais agrada, mas sim aquilo que  mais convém.”

Dos múltiplos tipos de leitura, de livros diversos como estão listados nos Inventários, ou como foram indexados por proibição, sobreviveram alguns com capacidade impressionante de sobrevivência, como o Cordel, tipo de literatura popular, encontrado em Portugal, com o mesmo nome, na Espanha, como Pliegos, no México, sob a forma de Corridinho, na França, como Literatura Blue ou de Coportage, ou ainda com outras denominações e lugares.

O caso da literatura de Cordel no Brasil chama a atenção, porque tem sua apresentação convencional no folheto, com forma própria de paginá-lo, colando-o, levemente, na dobradura das folhas impressas, 8, 16, 32 páginas, por livro, tendo capa geralmente xilográfica, mas tendo, também, usado clichês e, ultimamente, ilustrações envernizadas, como as feitas em São Paulo. Mesmo sendo um objeto gráfico, rústico que pode ser feito em qualquer prelo ou máquina, o folheto de Cordel tem ao mesmo tempo leitores e ouvintes.

As conversas foram fatos culturais preciosos, aguçando a memória das pessoas reunidas nas calçadas das casas, nas áreas comuns de encontro fixo, diário, nas rodas formadas por homens e mulheres, cada grupo expondo as suas preferências no debulhar de estórias, anedotas, tipos sobreviventes de literatura popular bem humoradas, sentimentais, apropriadas ao lazer social.

Muitas estórias do Cordel foram reproduzidas nas conversas, incorporadas aos repertórios dos contadores, que com suas técnicas, reuniam em sua volta um público atento, interessado, embevecido pelos temas narrados, varando as noites lentas. A conversa tem estrutura parecida com a leitura em voz alta, hábito também popular, como registrado em Portugal, de onde procedem muitas versões das composições circulantes no Brasil.

As leituras em voz alta eram, geralmente, de exemplaridade, buscando edificar moralmente as pessoas, no horário das refeições, como no Mosteiro de São Tirso, que tinha suas regras:

         “As mesas dos freires, quando comerem, nunca deve desfalecer lição. … E mui grande silêncio seja feito e estando à mesa não seja aí ouvida mussitação nem som feito com boca nem voz de nenhum senão daquele só que ler. E depois coma com os donairos e com os servidores da cozinha.”

A informação, extraída de Vida Monástica do Século XV, por Antonio Cruz, no Jornal de Notícias do Porto, de 7 de outubro de 1939, não é única. Outros registros dão conta do hábito da leitura em voz alta, rivalizando com os tipos de conversas, da mesma época, como a que narra Francisco Manuel de Melo na Carta de Guia dos Casados:

         “Contarei a v. m. (vossa mercê) uma coisa que a meu pesar me lembra. Caminhava por Espanha, e entrando em uma pousada bem cheio de neve, não houve algum remédio para que a hóspeda (hospedeira), ou suas filhas, que eram duas, me quisessem abrir um aposento, em que recolher-me; e quanto eu mais apertava, me desenganavam melhor de que nenhuma se levantaria donde estava,sem acabar de ouvir certa novela, cuja história ia muito gostosa, e enredada. E tal era a sofreguidão com que ouviam, que nem ameaçando-as com que iria a outra pousada, quiseram

desistir de seu exercício, antes me convidavam que ouvisse os lindos requebros que Cardênio

estava dizendo a Estefânia.”

Outro autor ilustre, Júlio Dantas, descrevendo a vida portuguesa do século XVIII, conta:

        “Havia determinados pontos da cidade (Lisboa) onde se reuniam, à tarde, homens e mulheres

para ouvir contar histórias, escutar a leitura, compassada, da literatura de Cordel. Esses lugares,

sempre os mesmos, eram o balcão do Livreiro de S. Domingos, o adro do Monte, a Ribeira das

Naus, o Cais da Pedra, e o Cano Real, aos domingos, na hora da sesta.”

Ali se repetiam, conforme o autor anônimo do Folheto das Duas Lisboas, – a história que aconteceu a Danadana, avó da antiguidade, comprida como a légua de Póvoa, e ali vinha àmemória de todos a morte da Imperatriz Porcina, com a sua xácara Tirano Amor, que as mulheres repetiam por solfa, enquanto o sol doirava os telhados da velha Lisboa de antes do terremoto, obom povo enlevado em histórias da carochinha – que eram o seu teatro e a sua biblioteca – ouviapela décima, pela centéssima vez, sem se cansar, as graças da cristaleira (Clara Lopes) e assisudas respostas da donzela Teodora.” (Literatura de Cordel, folhetim de O Comérico do Porto, 12 de janeiro de 1936).

O perfil da donzela Teodora para o povo é de um tipo de sabedoria feminina mais superior, como disse Almeida Garrett, alcançando grande celebridade em Portugal (ela era personagem de um romance provençal), a par da Princesa Magalona.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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