A crise da globalização

Pesquisando por aí em busca de informações me deparei com um pronunciamento do então deputado federal Albano Franco, no dia 4 de novembro de 2008 (https://www.camara.leg.br/internet/plenario/notas/ordinari/2008/11/V041108.pdf), registrando nos anais da Câmara um texto meu, intitulado “A crise da globalização”, publicado no Jornal da Cidade no dia 26 de outubro de 2008. Eu não lembrava dessa “homenagem”.

É um texto a propósito da crise que se abateu sobre a economia mundial, analisada sob a ótica do sociólogo Zygmunt Bauman. É sobre um debate que está longe de terminar, portanto, acho que ainda bem atual. Interessante é que o texto só fui localizar no portal da Secretaria de Estado da Transparência e Controle (https://www.setc.se.gov.br/index.php/ultimas-noticias/855-%22a-crise-da-globalizacao%22), que o publicou no dia 3 de julho de 2015. De onde o reproduziu não sei, já que eu não o tinha publicado ainda na Infonet.

Agradeço ao ex-deputado, ex-senador e ex-governador Albano Franco, tantos anos depois, pela gentileza e consideração. Segue o artigo.

 

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A crise de globalização

 

Marcos Cardoso

 

A crise de insolvência que se abateu sobre os Estados Unidos e a Europa atinge o Brasil como uma crise de liquidez. O dinheiro estava aqui e agora não está mais — ou pelo menos não está no mesmo volume que estava há pouco. É uma crise da globalização, esse fenômeno gerado pela necessidade da dinâmica do capitalismo, que tanto une quanto divide, como observa o sociólogo polonês/inglês Zygmunt Bauman no livro “Globalização: As Consequências Humanas”, publicada originalmente na Inglaterra há dez anos, 1998.

Avaliando os efeitos da compressão espaço/tempo na estruturação das sociedades e comunidades planetárias e territoriais; os estágios sucessivos das guerras modernas pelo direito de definir e impor o significado do espaço comum; as perspectivas da soberania política sob as condições da economia, finanças e informação globalizada; as consequências culturais dessas transformações; e, por fim, explorando as expressões extremas da polarização da experiência humana, com a tendência atual de criminalizar casos que não se adequam à norma idealizada, Bauman disseca a globalização em todas as suas manifestações, sustentando que o fenômeno pós-moderno tanto divide quanto une, abrindo um fosso cada vez maior entre os que têm e os que não têm — entre o Primeiro Mundo e o Segundo Mundo, sejam estes países ricos e países pobres, sejam as elites e os excluídos dos países desenvolvidos ou em desenvolvimento. Mas, como observa, sua intenção é produzir um livro para discussão. O autor “faz muito mais perguntas do que dá respostas e não chega a nenhuma previsão das consequências futuras das tendências atuais”. Mas nem precisava.

Zygmunt Bauman introduz sua obra com uma assertiva que parece incontestável: globalização é o destino irremediável do mundo, um processo irreversível; é também um processo que nos afeta a todos na mesma medida e da mesma maneira. Mas quem se beneficia da globalização? Esta é a pergunta que o livro tenta responder, sem se arriscar a fazer previsões futuras. O autor adverte: o que para alguns é globalização, para outros significa localização; o que para alguns é sinalização de liberdade, para muitos outros é um destino indesejado e cruel. E acrescenta: ser local num mundo globalizado é sinal de privação e degradação social.

Bauman avalia a globalização em cinco dimensões, cada qual discutida em um capítulo: a economia global criando uma classe de proprietários ausentes; as guerras espaciais; a nova expropriação, com a divisão entre Estado e economia; a sociedade de consumo; e, por fim mas não por último, a ilusão da segurança.

No primeiro capítulo, “Tempo e classe”, Bauman identifica imediatamente o protagonista do capitalismo na era moderna recente, o “proprietário ausente”, que é nada menos do que a pessoa que investe, o atual tomador de decisão, o “dono” da companhia. O autor cita Albert J. Dunlap, o célebre “esquartejador” da empresa moderna, segundo o qual a companhia não pertence aos seus empregados, fornecedores ou à localidade em que se situa, mas às pessoas que nela investem. E as pessoas que investem “têm o direito de descartar, de declarar irrelevante e inválido qualquer postulado que os demais possam fazer sobre a maneira como elas dirigem a companhia”, porque elas não estão de forma alguma presas no espaço.

“Elas podem comprar qualquer participação em qualquer bolsa de valores e através de qualquer corretor, e a proximidade ou a distância geográfica da companhia será com toda a probabilidade a consideração menos importante na sua decisão de comprar ou vender”. Bauman conclui com a constatação mais cruel: cabe a elas portanto “mover a companhia para onde quer que percebam ou prevejam uma chance de dividendos mais elevados, deixando a todos os demais — presos como são à localidade — a tarefa de lamber as feridas, de consertar o dano e se livrar do lixo”.

E identifica o principal capital do capitalista moderno: a mobilidade — que se tornou o fator de estratificação mais poderoso e mais cobiçado, a matéria de que são feitas e refeitas diariamente as novas hierarquias sociais, políticas, econômicas e culturais em escala cada vez mais mundial. A mobilidade propicia ao capital sem amarras, que flutua livremente, livrar-se das consequências. “Os custos de se arcar com as consequências não precisam agora ser contabilizados no cálculo da ‘eficácia’ do investimento”.

A mobilidade da elite foi facilitada pelos recentes desenvolvimentos tecnológicos, a Internet sendo aqui emblemática. O aparecimento da rede mundial de computadores pôs fim — no que diz respeito à informação — à noção de distância a ser percorrida, tornando a informação disponível em todo o planeta, tanto na teoria como na prática. O impacto foi variável: para a maioria ainda separada por obstáculos físicos e distâncias temporais, a separação agora é mais impiedosa e tem efeitos psicológicos mais profundos do que nunca; mas para algumas pessoas — para a elite móvel, a elite da mobilidade — isso significa, literalmente, a libertação em relação ao “físico”, uma nova imponderabilidade do poder.

Em vez de homogeneizar a condição humana, a anulação tecnológica das distâncias temporal-espaciais tende a polarizá-la. No ciberespaço, os corpos não interessam. O que os poderosos precisam é isolar-se da localidade, e precisam da segurança desse isolamento, de imunidade face às interferências locais. “A desterritorialização do poder anda de mãos dadas, portanto, com a estruturação cada vez mais estrita do território”. O resto da população se vê afastado e forçado a pagar o pesado preço cultural, psicológico e político do seu novo isolamento. O território urbano torna-se o campo de batalha de uma contínua guerra espacial.

No capítulo 3, “Depois da Nação-estado, o quê?”, Zygmunt Bauman observa que a mobilidade abre uma divisão entre Estado e economia. O capital, que significa dinheiro e outros recursos necessários para fazer as coisas, para fazer mais dinheiro e mais coisas, move-se rápido — rápido o bastante para se manter permanentemente um passo adiante de qualquer Estado. A economia nacional está se tornando uma ficção contábil, as multinacionais estão se tornando cada vez mais supranacionais. E a influência crescente dessas organizações planetárias teve por efeito acelerar a exclusão das áreas fracas e criar canais para a alocação de recursos, retirados, pelo menos em parte, ao controle dos vários Estados nacionais. A nação-estado parece que se está definhando: “As forças modeladoras do caráter transnacional são em boa parte anônimas e, portanto, difíceis de identificar. Não formam um sistema ou ordem unificada. São um aglomerado de sistemas manipulados por atores em grande parte ‘invisíveis'”.

O próprio Bauman explica que o último capítulo, “Lei global, ordens locais”, explora as expressões extremas da polarização: a complexa questão da insegurança existencial colocada pelo processo de globalização, que tende a se reduzir à questão aparentemente direta da “lei e da ordem”.

A tendência atual de criminalizar casos que não se adequam à norma idealizada e o papel desempenhado pela criminalização para compensar os desconfortos da “vida em movimento” tornando ainda mais odiosa e repulsiva a imagem da realidade da vida alternativa, a vida da imobilidade. Nesse processo, as preocupações com a segurança, o mais das vezes reduzidas à preocupação única com a segurança do corpo e dos bens pessoais, são “sobrecarregadas” de ansiedades geradas por outras dimensões cruciais da existência atual — a insegurança e a incerteza.

“Globalização: As Consequências Humanas” é um livro que surpreende porque Zygmunt Bauman chama a atenção para todas as possibilidades que envolvem a globalização e como o fenômeno está mais presente no dia-a-dia de nós, seres humanos, do que normalmente podemos observar. Mas, principalmente, como diz a apresentação, é um antídoto ao entusiasmo daqueles prontos a se beneficiar do novo ritmo e mobilidade da vida moderna. A crise está aí para mostrar que talvez ele tenha razão.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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