A crise na prática da solidariedade humana: O Poço (2020)

Caroline de Alencar Barbosa

Mestra em Educação no Programa de Pós Graduação em Educação (PPGED/UFS)

Graduada em História na Universidade Federal de Sergipe

Integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET/UFS)

caroline@getempo.org

 

A reflexão sobre a sociedade é a forma mais eficiente de reconhecermos nosso mundo e promover a sua transformação. Imagem disponível em <https://midiainteressante.com/2020/03/o-filme-o-poco-tera-continuacao.html/?wpamp>

O serviço de streaming Netflix apresentou para o público mais uma obra de crítica social que beira à interpretação filosófica em torno da sociedade e como ela se apresenta. O filme espanhol dirigido por Galder Gaztelu-Urrutia foi lançado em 2019, mas só chegou à plataforma em fevereiro de 2020. Com um cenário único e uma narrativa de suspense O Poço nos trouxe inúmeras reflexões.

O protagonista Goreng acorda em uma prisão de níveis onde a cela é dividida somente com um companheiro e neste local ele deverá permanecer por seis meses, sendo que o nível em que está é modificado a cada mês (podendo subir ou descer). O diferencial desta consiste em sua estruturação em formato vertical, contando com um poço por onde o elevador vai do nível 0 (o mais alto) até o último levando o alimento diário de todos os que ali estão. Aí reside o ponto central de todos os problemas que envolvem o espectador na narrativa.

Vemos que estes alimentos são usufruídos em grande quantidade, com excessos, falta de educação e desperdício pelos residentes dos níveis superiores, em detrimento dos inferiores que recebem sobras e até mesmo uma mesa repleta de recipientes vazios.

Diante da obra nos deparamos com personagens que interagem com Goreng e trazem perspectivas diferentes sobre o local. Temos o velho, primeiro companheiro de cela, que se apresenta como alguém que o critica por escolher um livro como único objeto que poderia levar para a prisão, sendo que este escolheu uma faca. O simbolismo em torno da violência constante e a desvalorização do conhecimento enquanto uma arma “pouco eficaz” em uma situação onde a empatia e a preocupação com o outro são praticamente inexistentes.

Outro símbolo dentro da obra consiste na mulher, membro da administração, que enquanto uma figura alienada, não enxerga que todos os presos pensam somente em seu bem-estar e não estão interessados em um crescimento pessoal ou em praticar a solidariedade humana. Tenta uma política de apaziguamento e divisão de alimentos que só passa a ser praticada (parcialmente) a partir da ameaça violenta de Goreng aos membros do nível abaixo ao dele.

Por fim, temos o último companheiro de Goreng, um otimista que deseja ascender dentro dos níveis do poço e conquistar a liberdade, porém diante de atitudes racistas de indivíduos situados no nível acima, é privado de seus objetivos e decide juntar-se a Goreng em prol de uma revolução a fim de levar alimento a todos os níveis do poço, mesmo que desconhecidos por eles.

O Poço nos remete a uma realidade encarada por todos no cenário atual. Vivemos em uma sociedade que frente a uma pandemia não se preocupa com o bem estar do outro. Percebemos diariamente que, apesar de não existir crise no abastecimento, pessoas lotam seus carrinhos de compras com caixas de produtos para estocar, sem preocupação com a pessoa ao lado e as que virão em seguida. Brigas em grandes redes de supermercado foram vistas através de vídeos nas redes sociais e nos fazem pensar até que ponto a sociedade se permite esquecer do outro em benefício próprio.

Outra grande crítica que pode ser retirada do filme diz respeito ao desenfreado capitalismo e a soberba do ser humano. Enquanto permanecem em níveis superiores os indivíduos se esquecem que já viveram em outros abaixo dele e como a situação alimentar era precária. Se esquecem do outro e das dificuldades. A farta mesa enche os olhos, fazendo-os esquecer da necessidade passada em outrora.

A administração da prisão, por fim, pouco preocupa-se com o bem-estar dos que ali estão. A mensagem final do filme é realizada por intermédio de uma criança que, simbolizando a pureza em meio à total falta de companheirismo existente naquele local, é levada a nível 0 a fim de uma tentativa de conscientização em torno do total abandono dos poderosos governantes com as camadas consideradas por eles como “inferiores”.

O filme contém uma série de nuances que nos fazem pensar em nossa prática social e humana, critica firmemente o sistema e o movimento de valorização dos que tem muito e esquecimento dos que não possuem nada. Uma belíssima obra que a Espanha apresenta e que cabe ao nosso cenário político, econômico e social atual.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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