A culpa é do PT?

O Brasil tem assistido perplexo a cenas de barbárie explícita, que aumentam a percepção de que os mecanismos institucionais não conseguem mais controlar a ordem social. As manifestações populares não raro terminam em depredação do patrimônio alheio e até em morte, como no caso do cinegrafista Santiago Dantas, da Bandeirantes; internos são decapitados dentro de presídios para servirem de exemplo; a violência das torcidas de futebol atinge o ápice com a morte de um inocente golpeado por um vaso sanitário atirado por adversários do alto do estádio do Arruda, no Recife; uma dona de casa é espancada até a morte por uma turba insana do Guarujá, que, de modo inquisitório, a confundiu com uma bruxa virtual que usaria crianças em atos de magia negra; e adolescente de 13 anos é morta por amigas a pedradas por causa de ciúme em Foz do Iguaçu, Paraná.

O jornalista e cantor sergipano Nino Karvan cravou seu espanto com o ocorrido no litoral de São Paulo: "A turba ensandecida mata mais uma pessoa nessa onda de justiçamento que avança pelo país. Retirando o verniz da 'civilização' continuamos numa barbárie de doer!" A barbárie está nas ruas e se torna maior porque hoje tudo termina (ou começa?) nas redes sociais. Vivemos a espetacularização da desgraça, de preferência, alheia. Nessa exibição contemporânea do bizarro, até a bandidagem também quer seus 15 minutos de fama para desafiar as autoridades, mostrar prestígio entre os pares e também produzir medo. E tudo isso ajuda a exaltar os ânimos.

E há exaltados para todos os gostos. O cineasta aloprado Arnaldo Jabor acha que a culpa é dos petistas e a solução é "tirar do poder esses caras". O articulista do conservador Jornal da Globo fez a pregação na última terça-feira. "A chegada do PT ao governo reuniu em frente única os dois desvios: a aliança das oligarquias com o patrimonialismo do Estado petista. Foi o pior cenário para o retrocesso a que assistimos", expeliu.

"As instituições democráticas estão sem força, se desmoralizando, já que o próprio governo as desrespeita. Essa fragilização da democracia traz de volta um desejo de autoritarismo na base do 'tem de botar para quebrar!'. Já vi muito chofer de táxi com saudades da ditadura. A influência do petismo também recriou a cultura do maniqueísmo: o mal está sempre no outro. Alguém é culpado disso tudo, ou seja, a 'média conservadora' e a oposição", disse o velho Jabor, concluindo sua protossociologia: "O Brasil está com ódio de si mesmo. Cria-se um desespero de autodestruição, e o país começa a se atacar".

Como nada acontece por acaso, no dia seguinte o jornal O Globo reverberou extenso editorial concluindo que há uma percepção popular — mesmo que não verbalizada por todos — da falência de instituições. Situação, prossegue o texto, agravada pelo péssimo exemplo dado por partidos políticos e pelo envolvimento de correligionários em casos de corrupção. "O mau exemplo do PT chega a ser mais daninho, por ter conquistado o poder com a aura de extrema seriedade e honestidade. Ao trair as promessas de defesa intransigente da ética, dá grande contribuição, infelizmente, ao descrédito da população diante dos poderes constituídos." E encerra um tanto vago: "Não há culpado único por todo este drama social."

Efeito multiplicador

O ato bárbaro que provoca maior comoção certamente é o linchamento, quando um grupo de pessoas relativamente próximas faz justiça com as próprias mãos infringindo castigo físico a alguém que supostamente teria praticado um crime. O resultado é quase sempre a morte. A prática é mais comum do que se vê na imprensa e o Brasil é um dos países mais violentos do mundo também nesse aspecto. Mas não é uma novidade.

Em 1990, três jovens delinquentes  mantiveram refém, sob a mira de um revólver, uma família em Matupá, cidade do Mato Grosso. Depois de horas de negociação eles se renderam. Mas não chegaram a ser presos, muito menos condenados pela Justiça. Foram linchados pela população da cidade. Um cinegrafista amador gravou toda a violência. As cenas são chocantes. Depois do espancamento, um homem joga gasolina nos três. Em seguida, alguém ateia fogo. Um deles, ainda vivo, se debate enquanto tem o corpo incendiado. As imagens vieram a público e correram o mundo. E o número de linchamentos no Brasil bateu recorde. Foram 148 casos em 1992, contra 48 do ano anterior, segundo dados do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo.

A dinâmica "notícia violenta-explosão de casos" se repete ciclicamente e parece se repetir este ano com os linchamentos. No rastro da metodologia adotada nas pesquisas do NEV/USP, cujos dados são baseados em notícias publicadas na imprensa, o jornal Estado de Minas levantou, por meio de informações divulgadas em portais de notícias, 36 casos de linchamentos e espancamentos coletivos, neste ano, em 15 dos 26 estados e no Distrito Federal. Dezenove deles resultaram na morte da vítima. A média é de um caso a cada oito dias.

A maioria absoluta aconteceu a partir de fevereiro, logo depois que um adolescente foi espancado por cerca de 15 homens e, nu, foi preso com um cadeado de bicicleta, pelo pescoço, a um poste no Bairro Flamengo, Zona Sul do Rio de Janeiro, em 31 de janeiro, com repercussão nos portais de notícias e redes sociais. Não é improvável que o fator Rachel Sheherazade, comentarista do SBT, tenha contribuído para o aumento dos casos.

Para a socióloga e pesquisadora do NEV/USP Ariadne Natal, autora de uma tese de mestrado sobre linchamentos em São Paulo, é preciso ter cuidado ao falar de aumento ou decréscimo de casos ao longo do tempo, pois a variação no total de notícias pode ser decorrência somente de um maior ou menor interesse da imprensa pelo tema em determinado momento. Uma elevação nos registros pode resultar da maior publicidade dos casos, que teria como efeito colateral a difusão do linchamento no imaginário da população como um recurso de justiça em situações de aumento de criminalidade e fraca resposta do Estado.

A socióloga ressalta que, independentemente dos motivos, não há dúvida de que multidões fazendo “justiça com as próprias mãos” revelam um descrédito da população com as instituições responsáveis pela manutenção do estado de direito. “A linguagem do linchamento é pública. A intenção é ir ao extremo da violência para mostrar descontentamento com o Estado, por isso não basta espancar, matar. Tem que expor o corpo em praça pública e, nos tempos atuais, nas redes sociais”, observa.

Estado seletivo

Marcos César Alvarez, pesquisador sênior do mesmo NEV/USP, lembra que o linchamento é quase sempre um ritual, com regras claras, mesmo que não totalmente conscientes, por parte de quem pratica. "A questão da consciência, assim, não é o mais importante, pois os envolvidos sabem do significado do que estão fazendo. De alguma forma, acredito que os participantes têm clara consciência do que estão fazendo, da vulnerabilidade social daqueles que são atacados. Esse aspecto torna tal ato de barbárie ainda mais preocupante em sociedades como a brasileira".

O sociólogo afirma que uma mesma lógica está presente na permanência da tortura contra detidos e presos comuns, nas péssimas condições de vida e de violência nas prisões, nas execuções nas periferias das grandes metrópoles. "Tais práticas expressam claramente uma tradição de hierarquização da cidadania, já que alguns indivíduos estão excluídos da proteção das leis e podem ser sacrificados, sem maiores consequências. Mais do que uma ausência do Estado, os linchamentos expressam a existência de um Estado seletivo, que não protege ou pune a todos igualmente, e setores da sociedade que reafirmam concepções conservadoras, no que diz respeito ao problema da manutenção da ordem social."

Dados sobre linchamentos levantados pelo NEV/USP em uma série histórica iniciada em 1980 são praticamente os únicos disponíveis no Brasil com abrangência nacional. Até 2006, ocorreram no país 1.179 casos de linchamentos, definidos pelo núcleo como ações coletivas de justiçamento, mesmo em casos em que a violência não resulta em morte. Em Sergipe, em outubro passado, um assaltante foi linchado e morto em Propriá. Na semana passada, dois supostos assaltantes só não foram espancados dentro de uma loja no Centro de Aracaju porque o gerente pediu "que o linchamento não fosse dentro da loja". Certamente para não sujar o ambiente.

Os números não são precisos, uma vez que linchamentos e espancamentos coletivos não são caracterizados como um tipo penal e, por isso, não fazem parte das estatísticas de crimes elaboradas pelos órgãos de segurança.

O sociólogo Rudá Ricci, estudioso do "Lulismo", lembra que, no Brasil, fazer justiça com as próprias mãos não é um ato restrito aos linchamentos. Ele cita os casos das milícias ou justiceiros que atuam em diversas regiões do país, principalmente nas periferias. “O motivo disso é a ausência simbólica ou concreta do Estado, ou a desconfiança de que a justiça não vai ser feita ou será tardia”. Segundo o Índice de Confiança na Justiça, elaborado pela Fundação Getulio Vargas, só 5% dos cidadãos confiam nos partidos políticos. No Poder Judiciário (42%), no Congresso (40%) e no governo federal (40%) a confiança é maior, ainda assim os que não acreditam nessas instituições são maioria.

A violência como o linchamento é uma sinalização clara da sociedade de que a segurança pública e a Justiça não funcionam plenamente. Mas a culpa não é só do PT.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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