É no mínimo curioso que a Igreja católica reúna, na mesma festa, um doutor, um profeta e um apóstolo. O ciclo junino, que tem começo a 13 de junho e que vai até 29 de junho, é o mais genuíno dos grupos festivos, englobando crenças antigas, tradições e costumes típicos do nordeste brasileiro, associando o culto agrário da colheita do milho, ao conjunto de manifestações artísticas e culturais mais representativas do povo, destacando-se a culinária. O ciclo junino faz a transição entre a vida rural, celebrada em certas épocas, como no plantio e colheita do milho, quando as casas e arruados se transformam em arraiais, nos quais não faltam as comidas de milho e coco, e a vida urbana, essencialmente consumidora, como um mercado de usuários que guardam os velhos hábitos como forma de construir a identidade social. As festas começam, na verdade, no dia 1º de junho – com o trezenário de Santo Antonio – correm pelos dias dedicados a São João, e terminam com a louvação a São Pedro, dando a cada um os traços característicos com os quais são reconhecidos pelo povo brasileiro. Santo Antonio é um casamenteiro, mas também um santo de milagres, atento a atender as demandas dos seus fiéis, atribuindo-se a ele a defesa do Brasil, por exemplo, o que teria levado as autoridades portuguesas e brasileiras a considerá-lo um protetor ,dando-lhe patentes e soldos – no Império e da República -, e, como ainda hoje, em Igarassu, Pernambuco, onde Santo Antonio é vereador. São João, que batizou Jesus, é um porto seguro de fé, vinculado à família do Salvador, mas também em torno do seu nome existem muitas crenças, adivinhações e sortes vinculadas ao casamento. É em torno de São João que a festa ganha seus contornos mais populares, com a capela, a fogueira, os hábitos de compadrio, a mesa farta. São Pedro, fundador da Igreja, discípulo direto e dileto de Jesus, santificado em seu martírio, ampara os injustiçados, estimula os pescadores de almas, complementando o ciclo de junho. No culto junino, os santos perdem, de algum modo, suas qualidades individuais em favor do coletivo, o que faz da festa um compacto de fé e devoção, aureolado de atividades que realçam a importância do ciclo para a relação entre a Igreja e o povo. Uma relação de intimidade, que abarca a organização familiar e comunal, dando ênfase a uma certa unidade de pensamento e de submissão diante do mundo e da vida que fluem, tocados pelos mesmos sentimentos religiosos, de tempos antigos. As festas juninas sergipanas são amplas e diversificadas. Cada santo, independentemente do conjunto de manifestações, tem seu culto e merece do povo devoção especial. Era comum, em Aracaju, as novenas nas residências, atraindo muitas pessoas a cada noite, o que significa ser da tradição guardar a imagem do santo de Lisboa (e de Pádua), nos oratórios domésticos. A mais velha das igrejas da capital sergipana tem como orago a Santo Antonio e nela, anualmente, a população assiste o entusiasmo dos devotos. Há, ainda, um bairro na capital e no interior muitos municípios têm como Padroeiro Santo Antonio. São João, que tem capela na avenida Carlos Burlamaqui, em Aracaju, de onde sai procissão, todos os anos, tem rua especialmente dedicada à festa, onde as quadrilhas, os bailes animados por conjuntos de forró, as mesas de comida, o vestir caipira, tudo enfim exalta o padroeiro do ciclo. São Pedro continua acompanhando o casamento da viúva, encerrando os festejos, quando a população parece já cansada das brincadeiras. Municípios como Capela e Muribeca, contudo, guardam todas as energias para celebração de São Pedro. Ao estudar as festas juninas em Sergipe, Luzia Maria da Costa Nascimento preenche um vazio no registro e na crítica da cultura popular, enriquecendo a bibliografia essencial, do populário sergipano. E o faz com a autoridade de quem tem a vivência das comunidades, avivadas na memória recorrente, como a do seu Arauá, de Nossa Senhora da Conceição da Parida, terra lúdica, cenário sensível de muitas recordações, onde florescem todas as lembranças, desde a infância ao lado dos pais, hoje duas saudades. Profissional do Direito, com largo currículo, atuante no Movimento de Apoio Cultural Antonio Garcia Filho, da Academia Sergipana de Letras, Luzia Maria da Costa Nascimento não perdeu os vínculos com as sagas ingênuas da gente sergipana, que afloram em datas festivas como as que celebram os santos do mês de junho, como dá, no seu livro, uma contribuição ensaística, revisitando aspectos fixados da biografia dos três santos, incorporando um fazer local, acoplado ao devocionário popular. O livro de Luzia Maria da Costa Nascimento, que além das pesquisas e informações que o tornam denso estudo, é complementado com um Anexo dedicado ao capítulo da culinária junina, como se fosse um caderno de receitas, a provocar o paladar. O livro, que também registra orações, simpatias, crenças sobreviventes em torno dos três santos, está destinado a ser uma nova referência sobre o ciclo de festas juninas, ampliando a massa crítica das Jornadas do Centro de Criatividades, que por anos seguidos foram da iniciativa e coordenação da professora Aglaé d´Ávila Fontes, e que são repositórios de preciosas informações e análises. O livro de Luzia Maria da Costa Nascimento preenche, agora, um espaço importante da interpretação dos fatos culturais, com os quais as comunidades convive no cotidiano de suas crenças, fazeres e lazeres. *Ilustrações de Leonardo Alencar Permitida a reprodução desde que citada a fonte “Pesquise – Pesquisa de Sergipe / InfoNet”. 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