– Meu filho, acorde, você tem que viajar! Dizia minha mãe, balançando, suavemente, o punho da minha rede.
Despertei, meio assustado, e levantei-me de um pulo só.
De pé, fitei bem à minha frente, a imagem mais linda do mundo: minha mãe segurando a lamparina acima da sua cabeça, para expandir a claridade.
A pouca luminosidade e o bruxulear da luz davam-me a visão de uma santa.
Era muito cedo, antes do primeiro cantar do galo. Imagina-se que entre 2h e 3h da madrugada. Não tínhamos como nem onde ver as horas.
O certo é que ela já estava pronta para se despedir do homem da casa, seu filho mais velho, que partiria, naquele instante, para o Rio de Janeiro. Seu esposo, meu pai, lá estava havia muito tempo.
Toda a responsabilidade repousava, agora, sobre os ombros daquela mulher que, a todo dia, teria de inventar e reinventar meios para alimentar e manter os cinco filhos que ficaram, bem como os aderentes que, naturalmente se acostavam à nossa casa, pois vinham de origens bem mais humildes que a nossa.
Para a cerimônia do adeus, minha mãezinha usava seu melhor vestido, já havia penteado os cabelos, face limpa, tez sedosa e angelical, emoldurada com vastos cabelos sombrios, que contrastavam, harmoniosamente, com aquele belo rosto de mulher semita (descendente de judeus holandeses). Jovem ainda, minha mãe, quarenta e dois anos, treze partos, doze nascidos vivos e apenas seis vingados.
Aquela imagem ficou para sempre na minha retina, minha mãe era e continua linda. Ainda que com o rosto um pouco abatido, certamente por ter derramado muitas lágrimas no silencio solitário da alcova onde dormia e também porque, ao que tudo indicava, àquela hora, ainda não havia “pregado os olhos”, preocupada em dormir e não acordar a tempo de arrumar o filho para a grande viagem.
Naquele momento de êxtase em que, imóvel e sem saber o que fazer, eu a fitava, nem percebi que todos os meus irmãos estavam ali. Ela, já acordara a todos, até a mais novinha, que, em volta dela, agarrados à barra de sua saia, em silêncio choravam. Eu não os havia visto ainda por não ter desviado o meu olhar de minha mãe e, também, devido à luz fraca do candeeiro.
Ela conseguiu verbalizar:
– Venha, meu filho, venha tomar um cafezinho!
Esse foi o momento em que a acompanhei, rodeado por todos os meus irmãos, até a cozinha, onde repousava, em cima da chapa do fogão, o bule com café e, ao lado, uma cuia com farinha. Fiz meu desjejum, usei a raspa de juá, banhei o rosto e estava pronto.
Minha mala já arrumada com uma calça, duas camisas, duas cuecas samba-canção, um par de meias e, ao lado, o par de sapatos que havia ganhado do meu querido tio, repousava à porta da saída.
Chegada a fatídica hora de partir, o volume do choro subiu de tom, as apelações e lamúrias também eram bem características e espontâneas:
– Oh meu Deus! Será que meu filho um dia vai voltar? E, se voltar, será que eu vou estar viva?
Dizia aquela mulher forte que quedava a incerteza do destino e da imprevisão, pois era natural acontecer: filhos que faziam esse tipo de viagem, demorarem muito a voltar e, até mesmo, nunca mais regressarem e nem darem notícias.
Arranjavam famílias por lá e, esqueciam seus “velhos” que, muitas vezes, morriam de tristeza, de saudades e melancolia.
Abracei cada um dos meus irmãos e à minha mãe. Foi um momento de muita emoção sentir o cheiro da família, da carne de minha carne, dos meus. O coração ficou apertado, muito apertado, sobretudo quando tive que abraçar minha mãe. Choramos juntos por alguns segundos e veio o pedido que me impactou a crescer para ser e a ser para ter. Mamãe falou bem baixinho entre soluços de tristeza e desespero:
– Meu filho, quando você ganhar algum dinheiro, compre uma terra para a gente morar. É tão ruim viver na terra dos outros, a gente não pode ter nada, não pode plantar, não pode criar. Eu sonho criar meus bichinhos e plantar meu roçado para termos comida o ano inteiro. Você faz isso, meu filho? Respondi afirmativamente, baixei a cabeça, peguei minha maleta e dei as costas aos soluços.
No final do terreiro, virei-me para o aceno de despedida. Avistei uma cena de que, também, nunca mais vou me esquecer: minha mãe, em pé na soleira da porta, segurando a lamparina, que ameaçava ser apagada pelo vento, abraçada por todos os meus irmãos.