A Guerra e o Amor no Mar de Sergipe

O mar sergipano, que recebe o contributo das águas que descem em rios que são da história – São Francisco, Japaratuba, Sergipe, Cotinguiba, Vaza-barrís, Piaui e Real – foram tinturadas de sangue, no fatídico agosto de 1942. Muitos mortos, feridos, náufragos dos torpedeamentos alemão, vítimas de uma agressão sem precedentes, que parece ter contado com a colaboração de súditos estrangeiros e de simpatizantes do nipo-nazi-facismo. As barras dos rios, antes conhecidas pelos naufrágios de barcos famosos, que sustetavam os planos de colonização do Brasil, como o Grifo Dourado, do capitalista Gabriel Soares de Souza, arrebentado pelas ondas na foz do rio Vaza-barrís, se transformaram em palco dantesco, de destruição, vitimando pessoas inocentes, que cumpriam viagens pela costa nordestina. Crianças, adultos, famílias inteiras, soldados, todos desfilaram suas dores, suas agonias.

AÇÃO DE GUERRA

A II Guerra Mundial, iniciada, por motivos obscuros, na distante Europa, em 1939, provocava manifestações em grande parte do mundo. O Brasil ficava neutro, embora cultivasse amizades com países do Eixo e outros participantes do conflito. A neutralidade brasileira era fragilmente garantida pelos pequenos navios da Marinha de Guerra, que patrulhavam as costas. Na verdade, as autoridades do Brasil confiavam no respeito aos tratados internacionais e aos princípios que regiam o relacionamento entre as Nações. Os serviços de informações da guerra, em meio a boatos, apontava para a tática alemã de afundar navios e minar as saídas, principalmente na costa do nordeste e especificamente nos portos de Recife, Salvador e Rio de Janeiro. Para isto o submarino U-507 partiu de Bordéus, na França, em princípios de junho de 1942, comandado pelo Capitão de Corveta Harro Schacht, alemão nascido em Hamburgo. O plano foi abortado, tendo os estrategistas da guerra preferido esperar a vez de atacar, em segurança, as posições brasileiras.

Ainda no dia 15 de agosto de 1942, já ao fim da tarde, o periscópio do  submarino avistou um navio, e logo deu início a armação traiçoeira, esperando o momento propício ao ataque. Aos  12 minutos do dia 16 de agosto de 1942, o navio BAEPENDY foi sacudido, violentamente, pelo fogo do Submarino alemão U-507. O sucesso germânico foi total. O submarino permaneceu na zona do ataque, a espera de outros barcos que estavam em viagem na área. Ainda na mesma madrugada de 16 de agosto, o navio ARARAQUARA foi avistado e torpedeado, inflando o sucesso do capitão Harro Schacht na guerra. De pouco adiantava aos navios brasileiros navegar com as luzes acesas, indicando a neutralidade do País, cuja bandeira tremulava como identificação. Fechando o dia 16 foi torpedeado o navio ANIBAL BENÉVOLO. No dia seguinte, 17, as 15:49 o navio atingido era o ITAGIBA, seguindo-se, as 18 horas o ARARÁ e, as 23:37 um cargueiro, sem identificação, mas que pareceu ser o S.S. CLYMER, pois uma sua baleeira apareceu na costa da Barra dos Coqueiros. No dia 18, para corrigir uma avaria, o U-507 emergiu e foi atingido, sem conseqüências, por um avião Consolidated, dos Estados Unidos. No dia 19, encerrando suas agressões, o submarino alemão torpedeou o cargueiro, a vela, JACIRA. No dia 23 de agosto retornou à base, não sem antes liquidar com fogo de artilharia e 4 torpedos o navio mercante HAMAREN, de bandeira sueca.

O torpedeamento do S.S. CLYMER nas águas sergipanas parece ter dado o mote para que circulasse a versão de que as agressões aos navios brasileiros partiram dos Estados Unidos, para forçar a que o Brasil deixasse de ser neutro e entrasse na guerra. A tese prosperou, na medida em que alguns súditos estrangeiros passavam o constrangimento da suspeição, fossem presos e revistados e tivessem suas casas e bens atingidos pela violência produzida pela revolta popular, que desde o dia 16 de agosto tomou as ruas de Aracaju e de Estância, principalmente. Sergipe viveu, então, entre dois caminhos: o da dor e do sofrimento pelos mortos e feridos, que exigia socorro e solidariedade, e a revolta pela traição. Era tempo de prosperar toda a boataria, suspeita, não faltando injustiças cometidas contra pessoas de estrangeiros e suas famílias. Há quem diga, ainda hoje, por exemplo, que o submarino alemão tinha comunicação com o italiano Nicola Mandarino,proprietário de uma fazenda cortada pelo rio Vaza-barrís.

Em meio aos fatos, levantaram-se vozes lúcidas, emocionadas, condenando o ato de guerra e exigindo das autoridades brasileiras o fim da neutralidade e a entrada no conflito, que se alastrava. Em Estância, cenário dos horrores, Renato Cantidiano, no jornal A Razão, clonclamava as massas esclarecidas para o protesto contra a agressão alemã, que feria todos os fóruns de civilidade. O mote das ruas, que alcançava alto volume em Aracaju, era a quebra da neutralidade, a reação brasileira, a declaração de guerra contra o Eixo. Rapazes dispostos, interrompiam seus estudos e ofereciam suas forças para honrar a pátria e a terra feridas. Era preciso, no entanto, conter os excessos e impedir, por exemplo, que pessoas sem escrúpulos chegassem a cortar os dedos dos náufragos, para tomar posse de anéis, alianças, expropiando o que restou da tragédia.

A AJUDA QUE VEM DO AR

O Aero Clube de Sergipe, fundado em 1939, e apoiado pelo Governo da Intendência Federal e por setores empresariais, mantinham seus pequenos aviões, destinados a aulas de pilotagem e as tarefas extraordinárias, que pudessem surgir em Sergipe. Por isto o Aero Clube utilizava uma de suas aeronaves para fazer patrulha, entre Alagoas e Bahia, cobrindo integralmente a costa sergipana. Foi cumprindo uma rotina, que no dia 16 de agosto de 1942 o pequeno avião do Aero Clube, pilotado por Walter Baptista e Lourival Bonfim, mais tarde engenheiro e industrial, médico e cientista, avistou um homem, fazendo esforço para sair do mar. Era na altura do Mangue Seco, terras da Bahia. Descendo para oferecer socorro ao náufrago, os dois jovens pilotos tomaram conhecimento do ocorrido e identificado a vítima como um cozinheiro de um dos navios torpedeados, transferiram-na para o Crasto, no lado praieiro sergipano.

Foram os pilotos do Aero Clube que trouxeram à sua base, em Aracaju, a notícia dos fatos, informando ao Interventor Federal, que por sua vez comunicou ao Governo Central, no Rio de Janeiro, desencadeando uma mobilização que ganhou as praças e ruas do Brasil, gritando em uníssono para que as autoridades brasileiras declarassem guerra aos nazistas e seus colaboradores. Aracaju comovia-se com o drama das famílias das vítimas dos torpedeamentos. Casas de família recebiam doentes, abrigavam parentes, socorriam a todos, no transe difícil da tragédia inusitada. Na mesma proporção da solidariedade, surgiam os protestos, os atos de vandalismo, a demonstração da antipatia pelos estrangeiros residentes em Sergipe, alguns dos quais influentes empresários.

Dias e meses de um trauma que nunca sarou. O Brasil desceu do muro e negociou sua entrada na guerra, organizando, mais adiante, a Força Expedicionária Brasileira – FEB, que lutou nos campos de batalha da Italia e honrou a farda com o patriotismo que dava resposta à agressão. Vários sergipanos, incluindo mulheres que serviram como enfermeiras, a exemplo de Lealda Campos, vestiram o uniforme da FEB, com orgulho e patriotismo, como a vingar os torpedeamentos covardes que vitimam centenas de pessoas e deixaram na alma sergipana um sentimento de tristeza e de amargura, que jamais se apagou da memória sergipana.

O militar alemão Harro Schacht tinha planos de voltar à costa sergipana. Em 8 de janeiro de 1943, à altura das Guianas, na sua viagem de regresso ao Brasil, torpedeou o navio inglês YORKWOOD. No dia 9 do mesmo mês e ano, na altura do Pará, bombas de profundidade encerraram a carreira do Capitão, então com 35 anos e destroçaram o submarino U-507. O militar recebeu, então, do Governo da Alemanha promoção pós morte, e a homenagem da Ritter Kreuz dês Eisernem Kreuzes, pelos seus atos considerados de heroísmo pelo seu País.

OS NÁUFRAGOS

Por toda a extensão da praia sergipana apareceram os cadáveres e os restos dos navios torpedeados. A costa do Saco, da Caueira, em Estância, do Mosqueiro, da Barra dos Coqueiros, ilha em frente a Aracaju, receberam os corpos e restos de corpos, juntamente com escaleres, baleeiras e tábuas, resultado da operação de guerra alemã. A grande mobilização social visava condenar, nas ruas, a agressão surpreendente e mortal do submarino U-507, apupando os colaboradores, apontados como responsáveis pelas informações sobre os navios que cumpriam linhas regulares na costa brasileira do nordeste. No mais, era acolher os náufragos, salvar restos de vida, sepultar os mortos, cobrir com a solidariedade a dor, o luto, o sofrimento.

Alguns estrangeiros, suspeitos de colaboração, responderam a Inquéritos, sob a responsabilidade do então Chefe de Polícia, o magistrado Enock Santiago. Casas, móveis e outros pertences foram retirados das casas dos estrangeiros, jogados na rua, queimados, quebrados, como uma vingança desesperada, no transe agressivo que mutilou a sociedade sergipana. Foi de Sergipe que saiu o grito de revolta, que ecoou por todo o Brasil, mobilizando nas capitais do País as forças esclarecidas, os jovens dos dois sexos, os estudantes, todos os patriotas inconformados com a traiçoeira ação de guerra dos alemães e seus parceiros na guerra.

Parte dos mortos foi sepultada na própria praia, pelo movimento das marés ou nos areais entre a foz do rio Sergipe e a foz do rio Vaza-barrís, onde foi feito o Cemitério dos Náufragos. Outros foram sepultados, como se fossem todos indigentes, sem parentes, no Cemitério dos Cambuís, mais tarde Cemitério da Cruz Vermelha, vizinho ao Cemitério Israelita, na zona oeste da capital sergipana. Entre os mortos, as famílias identificavam seus entes queridos, como o Capitão Aduaneiro Antonio Fernandes Neto, casado na família Matos Teles, que viajava no ANIBAL BENÉVOLO e deixou duas filhas: Ilma Teles Fernandes e Maria Amélia Teles Fernandes de Luca.

Em 21 de novembro de 1980, com a presença do General João Figueiredo, Presidente da República, o Governo do Estado de Sergipe (Augusto Franco, governador) inaugurou com o nome de Rodovia dos Náufragos a estrada, asfaltada, entre os bairros de Atalaia e Mosqueiro. Vários sobreviventes dos torpedeamentos no Brasil, sergipanos de origem, foram homenageados, dentre eles: Francisco Avelino dos Santos, nascido no povoado Areias, município de Santo Amaro das Brotas, tripulante (Moço de Convés) do navio mercante COMANDANTE LIRA,  torpedeado na costa brasileira, entre os Estados de Pernambuco e Ceará; Diógenes Lima Carvalho, natural de Itabaiana, maquinista do navio auxiliar VITAL DE OLIVEIRA, torpedeado próximo a Cabo Frio, no Rio de Janeiro.

UMA HISTÓRIA DE AMOR

No bojo da tragédia, uma história de amor marcou a vida de Alaíde Lemos Lins Cavalcanti, passageira do ARARAQUARA, que viajava com seu marido, o Sub-Tenente Antonio Lins Cavalcanti e com três filhos. Salvando-se graças a uma grande bolha de ar, formada na baleeira emborcada e juntamente com alguns companheiros chegou a praia de Estância, vindo depois para Aracaju, sendo medicada e tomando, como hóspede, o Rubina Hotel, situado na praça Fausto Cardoso, no centro de Aracaju (onde hoje está o Palácio Tobias Barreto, sede do Tribunal de Justiça do Estado. Posteriormente foi abrigada na casa do Dr. Alfredo Aranha. Além do esposo e dos seus três filhos, Alaíde Lemos Lins Cavalcanti perdeu seu irmão, o Sargento Valdemar Figueiredo Lemos.

Francisco Alves Pereira, cearense de Baturité, Sub-Tenente do Exército, esperava em Campina Grande a chegada do ARARAQUARA, no qual viajavam sua mulher – Amélia Figueiredo Pereira – e seus três filhos. Ao saber da notícia dos torpedeamentos, desloca-se para o Recife e depois para Aracaju, onde fica sabendo, justamente pelo depoimento de Alaíde Lemos Lins Cavalcanti, que todos estavam mortos. Ele retorna a Recife, alista-se como voluntário para lutar na guerra, vai ao front e, quando retorna, reencontra Alaíde em 1945, e logo em 1º de janeiro de 1946 casa-se com ela, vindo morar em Aracaju a partir de 1950, definitivamente.

Firmando, provavelmente, um pacto de não ter filhos, Alaíde, que passou a assinar Alaíde Lemos Pereira e Francisco Alves Pereira selaram um compromisso até a morte. Vivendo em Aracaju, com casa na Rua Terêncio Sampaio, 80, no bairro Salgado Filho, ele morreu, em 13 de outubro de 1983, no Hospital São Lucas, aos 76 anos, vitimado por Broncopneumonia, AVC e outras doenças, sendo sepultado no Cemitério de Santa Isabel, no jazigo comprado por ela, em 17 de outubro do mesmo ano. Ela, das prendas do lar, enviuvou e sobreviveu, sem que sua vida fosse acompanhada mais do que pelos vizinhos. Ele, militar reformado como Capitão, ocupou cargos públicos na antiga SUNAB. Retraídos, de certo modo tristes, viveram em Aracaju por mais de trinta anos, participaram, e foram homenageados, em 1980, quando da inauguração da Rodovia dos Náufragos e embora evitassem falar sobre a história de amor que sufocava a tragédia, pareciam serenos no solidário amor que os uniu, nos tempos difíceis da guerra.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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