Continua o relato do oficial do Exército Lauro Moutinho dos Reis, vítima do torpedeamento do navio BAEPENDY, na costa atlântica sergipana, em agosto de 1942:
“As luzes apagam; esbarramos uns com os outros, desorientados, no meio de profunda
escuridão. O navio aderna brutalmente, já sendo impossível, agora, andar de pé.
O segundo torpedo foi o tiro de misericórdia. O BAEPENDY agoniza… Percebo que o
afundamento vai ser rápido. Esforço-me por sair do interior. Um cheiro sufocante e
enjoativo, proveniente de explosão, invade tudo.
Tateando, com grande esforço consigo agarrar-me à escada, e, de rastos, segurando-
me nas saliências, vou subindo devagar.
Na escuridão, apenas distingo, numa pequena claridade vinda de fora, o contorno
de uma porta, ao fim da escada que tento subir. É preciso atingi-la a todo custo,
porque senão eu afundarei dentro do navio. Mais um esforço, e consigo chegar.
O navio, nesse momento, está quase de lado: o que era parede passou a ser chão.
Atravesso aquela porta com os movimentos de quem, pela abertura do teto, passa
para o forro de uma casa.
Alcanço a baleeira em frente à porta. Presa aos turcos, num emaranhado de cordas,
alguns marinheiros tentam soltá-la. Não trocamos palavra. Começo a ajudá-los,
procurando desvencilhar cordas, febrilmente.
Mas é inútil: o BAEPENDY continua a se afundar vertiginosamente! As ondas
revoltas quase nos atingem , e ouço, bem perto, os gritos pungentes dos que já
lutam com elas.
Compreendo, então, que devo atirar-me imediatamente no mar, para não ser
arrastado pelo turbilhão que faria a massa do navio ao submergir. Mas já é tarde
demais porque, estando ele quase horizontal, se eu der um salto, cairei, conforme
o lado, sobre o casco ou sobre o convés. Ouço ainda o apito tenebroso do vapor, um
apito surdo e contínuo, agonizante, de estertor.
As águas me envolvem violentamente, jogando-me de encontro a uma parede.
Depois… sinto que mergulhamos arrastados pelo navio.
Penso, conformado, na morte: deste mergulho não voltarei, certamente! Não
perco o raciocínio, nem me deixo dominar pelo desespero. Antes me conservo
calmo, resignado, enfrentando o desfecho da vida. Continuo a mergulhar, a
mergulhar… Quantos metros? Nem sei. Sinto nos ouvidos o barulho forte e
característico das bolhas de ar, numa escala cromática extravagante, que vai num
crescendo do grave para o agudo, à proporção que me aprofundo nas águas… A
falta de ar já me tortura: começo a engolir água….
Súbito, porém, paro de mergulhar, e percebo que vou voltando. Mas sou, então,
violentamente imprensado entre dois volumosos fardos, e tenho a sensação de
que vou ficar esmagado. Inex0plicavelmente, não sinto nenhuma dor. Por
felicidade, fico de novo livre, e continuo a voltar, aos trancos, à superfície,
recebendo pancadas pelo corpo, agora mais rápido, – cada vez mais rápido – até
que, de repente, dou um salto, sinto-me fora de água o tronco todo, tal o
empuxo.
O navio está completamente submerso. Imagino que não deve ter levado a
afundar-se mais de três ou quatro minutos, tornando impossível qualquer
providência de salvamento, ou a decida de qualquer das baleeiras.
O mar, violentíssimo, encapelado, está coberto de destroços, e, não sei como
ainda caem paus de todos os lados, como estilhaços.
Ouço gritos terríveis, angustiosos, de socorro, e vejo homens, mulheres e crianças
se afogando em torno de mim.
Nado um pouco e me agarro a uns paus que flutuam, e que as fortes ondas me
arrancam logo das mãos: imediatamente me seguro noutros, mas também não
consigo sustê-los, e fico nesse jogo, pulando de uma tábua para outra, durante
algum tempo.
Reparo que há sobre as águas duas luzes avermelhadas, como archotes, a
iluminar aquela cena macabra: são bóias de iluminação, que se acendem,
automaticamente, ao contato com a água.
O mar limita-me a visão, e só quando me elevo numa onda melhora o meu
horizonte. Em dado momento, avisto com surpresa um projetor lançando
seu feixe luminoso sobre o local do sinistro: firmo o olhar e diviso, iluminado
pelas luzes que dançam na água, o perfil do submarino assassino, bem próximo
de nós, contemplando os resultados da sua bárbara missão. Em seguida, perco-o
de vista… (continua)