Pedro Carvalho Oliveira
Professor colaborador do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá (DHI-UEM)
Integrante do Laboratório de Estudos do Tempo Presente (LabTempo-UEM) e do Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET-UFS)
Uma representação do passado produzida no presente diz mais sobre o presente do que sobre o passado que se deseja representar. Esse é um consenso defendido por boa parte dos historiadores, sobretudo aqueles que se debruçam sobre este campo do conhecimento denominado História do Tempo Presente. Esse não é, ao contrário do que podem pensar os leitores, um recorte temporal posterior à história contemporânea, usado para circunscrever os desenlaces de processos humanos mais recentes. Embora também se ocupe disso, o referido campo atua, como dito pelo célebre François Dosse, na intersecção entre o presente e a longa duração. Tendo isso no horizonte, o historiador do tempo presente sabe que os processos novos, aparentemente inéditos, têm profunda conexão não apenas com um passado mais remoto, mas também com outro mais recente.
Quando Marc Bloch, talvez o maior historiador do século XX, escreveu Os Reis Taumaturgos, um verdadeiro clássico de nosso ofício, ele examinou o comportamento dos europeus em torno da crença de que os reis podiam curar as pessoas com um simples toque. Para além das demais contribuições do livro publicado em 1924, Bloch dialogava com seu presente, um contexto no qual as ideologias políticas nacionalistas ganhavam força após já terem influenciado sobremaneira os beligerantes da Primeira Guerra Mundial. Ressaltava, por meio de seu estudo, as semelhanças em detrimento das diferenças almejadas pela particularização nacionalista. Era seu alerta para os perigos que aquilo representava.
A indústria cultural do nosso tempo é um terreno fértil para quem deseja compreender melhor nosso campo. Quando vemos séries de televisão como Game of Thrones e outras lançadas em plataformas de streaming como Stranger Things, nos deparamos com exemplos passíveis de se converterem em registros para os interessados na História do Tempo Presente. A primeira narra complexas teias de relações políticas em um universo que simula o medievo, permeado por referências típicas da Europa daquele tempo, embora tenha como cenário a imaginária Westeros, um lugar imaginado pelo criador daquele universo. Contudo, apesar de seus personagens apresentarem espessas camadas de violência e de pouco apreço pela civilidade, a série nos coloca de frente com dilemas morais e éticos do nosso tempo. Os personagens se comportam em relação a esses problemas da maneira que nós, e não as pessoas da Idade Média, aceitamos, aprovamos, fantasiamos agir.
Já a segunda série, em sua terceira temporada, nos leva aos anos 1980 e ao epicentro de uma iminente guerra entre Estados Unidos e União Soviética, mote inquietante dos tempos da Guerra Fria. Espionagem, armas pitorescas e personagens estereotipados conversam intimamente com os retratos criados pelo cinema e pela televisão no decurso daquele conflito histórico, encerrado há mais de trinta anos. O que nos interessaria em tal narrativa, então? Para além da referência ao passado, a série é efeito do presente que a circunda, no qual EUA e Rússia têm retomado conflitos, apoiado lados opostos em guerras pontuais e disputado influência no cenário internacional. O maior acordo de desarmamento nuclear assinado pelas duas potências foi desfeito recentemente.
Se deixarmos esse mundo e nos voltarmos ao das redes sociais virtuais, teremos mais exemplos. Nos anos 1930, o rádio foi um mecanismo fundamental para a política. Conseguia levar a distâncias cada vez maiores os discursos e as notícias referentes a um governo ou um governante, tornando mais amplo seu alcance. Adolf Hitler fez uso irrestrito do rádio, assim como Getúlio Vargas no Brasil, ambos no mesmo período, para fazer com que a população se sentisse mais próxima da palavra do líder. Hoje, plataformas como o Twitter, utilizada amplamente por civis, é um dos meios mais prósperos de difusão política em uma época na qual divulgarmos nossa opinião em redes como essa nos dá a sensação de sermos também reconhecidos amplamente.
Os processos humanos se desenvolvem sem romper completamente com suas raízes, com seus pontos de partida. É necessário termos isso em vista para compreendermos que não há repetição na história, mas a continuidade de processos metamorfoseados pela ação humana. Embora EUA e Rússia não estejam disputando uma nova Guerra Fria, com os mesmos contornos da que conhecemos, devemos nos questionar: o que ficou daquilo? Um conflito tão grande e demorado não se esvai da noite para o dia, com a queda do Muro de Berlim ou coisa que o valha. Permanece nas sociedades e se transforma, sendo retomado ou não. Aí reside a maior importância da História do Tempo Presente hoje: percebermos como conhecer algo a fundo é essencial para termos dimensão do que representa.