A Institucionalização do Fascismo na PM

Júlia Rocha dos Santos

Graduanda em Letras pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) – Instituto Multidisciplinar

Texto produzido na disciplina História da Contemporânea II, ministrada pela Prof.ª Msc. Raquel Anne Lima de Assis

Charge de Carlos Latuff, 2013. Acesso em: Folha de São Paulo. Em suas obras, o cartunista critica o genocídio da população negra provocado pela violência policial. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/amp/poder/2019/11/reacao-de-deputado-ao-atacar-obra-prova-que-charge-estava-certa-diz-cartunista.shtml Acesso em: 04/03/2021.

 

“Mineirinho” é um conto escrito por Clarice Lispector e publicado pela primeira vez em 1969, quase no fim do século XX.  Logo nas primeiras linhas, ao se ver assustada diante de um episódio de violência policial, a narradora expõe que lhe dói a morte de um criminoso, apelidado “Mineirinho”, e justifica a sua escolha de contar cada um dos treze tiros que o mataram em vez da quantidade de crimes cometidos por ele. A partir daí, a autora inicia uma reflexão sobre o conceito deturpado de justiça e sobre a necessidade que a sociedade tem dela; uma necessidade que transcende a lógica de punição de crimes e da própria justiça.

Admitindo que a ficção é “parasita” da realidade, como afirmou o escritor Umberto Eco, ou seja, que através da Literatura podemos representar aspectos da realidade, entende-se que a reflexão trazida por Lispector no conto exemplifica uma construção de justiça que permeia também a sociedade contemporânea; não só a da década de 60, mergulhada no contexto da ditadura militar. Trata-se de uma noção de justiça construída em meio às turbulências do século XX e que, na segunda década do século XXI, começa a adquirir novas roupagens, ou melhor, uma farda.

Em 1922, o fascismo, uma ideologia baseada no autoritarismo, na xenofobia e no racismo, se apoderou da aparelhagem do Estado italiano. Desde então, a política e a sociedade passaram a ser marcadas pela concretização das crenças eugenistas que levaram a extremos diversos: perseguições, torturas, genocídios, dominação e barbárie. No entanto, o período que compreende o início da Primeira e data até o fim da Segunda Guerra Mundial não é apenas uma mera memória histórica, uma página de livro ou ainda um momento obscuro do século XX; o fascismo, além do passado, também é o presente. Por conta disso, não pode ser entendido como um movimento político específico de um determinado período, mas sim como um fenômeno que se ramifica em ideias, se adapta a contextos e que está em constante transição.

Para entender melhor a relação entre o agora e o fascismo, o professor Francisco Teixeira, em sua palestra Por que ainda debater os fascismos? (https://www.youtube.com/watch?v=C6xDr1pOXgM), sintetiza que o fenômeno é um movimento, ou seja, ele atravessa os períodos históricos e se apropria de instituições e órgãos, governamentais ou não, para exercer poder e instaurar suas ideias por meio da violência. Um Estado pode não ser declaradamente fascista, mas em seu interior existem práticas exercidas por determinadas instituições que o são e “que matam em nome da nação com a mesma perversidade”.

Sem tochas e símbolos, sendo o fascismo ramificações em práticas fascistas, uma dessas envolve o que hoje chamamos de segurança pública: uma instituição que visa garantir a justiça, mas que, na verdade, de acordo com as palavras de Lispector, “seria oitocentos policiais com oitocentas metralhadoras”. Essa política de segurança reproduz e legitima as ideias eugenistas que fundamentaram não só o grande acontecimento sociopolítico do século XX na Itália como o período pré e pós-abolição da escravatura brasileira. Essas ideias constituíram-se como a base da polícia e permitiram que, no século XXI, o fascismo fosse institucionalizado já não mais como um movimento político em grande escala genocida, mas sim como um instrumento estatal e social que dizima pouco a pouco aqueles que foram considerados inimigos pelos resquícios da colonização.

Entende-se, então, que a polícia militar, considerando-se a realidade brasileira, personifica a ideia de fascismo e trabalha a favor de sua manutenção, mas não trabalha sozinha. A sua legitimação ocorre pela ideia de justiça — que demonstra não ser tão cega quanto parece, pois tem olhos bem abertos para a cor e classe social — e pela sociedade, que acredita estar sendo protegida e justiceira ao “honorabilizar” a PM. É uma justiça que não se baseia apenas na lógica de punição de crimes, mas sim de vingança, pois, segundo Lispector,  “na hora que um justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado.”

O fomento ao crime particular é a necessidade de dizimação daquele considerado “o outro”, ou seja, o alvo para o fascista, e que no Brasil costuma ser o negro periférico. Esse que é visto como uma ameaça à sociedade, à segurança e à dignidade de uma nação. É essa ideia de “mal que precisa ser combatido”, proveniente do fascismo, que determina os alvos das ações policiais e faz com que um instrutor de um curso pré-militar afirme com propriedade nas redes sociais que “entrava chacinando e matando quem visse pela frente” em uma comunidade, seja mulher, seja criança ou seja bebê, para “eliminar o mal direto da fonte”.

A institucionalização do fascismo na PM se manifesta por meio dos 80 tiros que mataram Evaldo e Luciano, os 70 tiros disparados contra a casa de João Pedro, os 13 tiros de Mineirinho e as únicas balas perdidas que acharam as meninas Ágatha, Emily e Rebeca. Todos corpos, ou alvos, negros. Para fora da ficção de Clarice Lispector, diante dessa construção de mundo, não podemos ser “sonsos essenciais” servindo a essa instrumentalização da violência com o silêncio.

 

Para saber mais:

GONÇALVES, Williams da. A Segunda Guerra Mundial. In: FERREIRA, J., REIS FILHO, D.A., ZENHA, C. (org.). O século XX: o tempo das crises. Revoluções, fascismos e guerras. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 165-194.

LISPECTOR, Clarice. Todos os contos. Organização: Benjamin Moser. 1. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2016. p. 386-390.

SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. O século XX: entre luzes e sombras. In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. O século sombrio: uma história geral do século XX. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p.1-25.

SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. O ofício do historiador hoje. Uma questão candente: Por que debater os fascismos. Youtube, 2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=C6xDr1pOXg >. Acesso em: 08 dez. 2020

 

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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