A Intervenção Federal em Roraima

Em tempos de “pós-verdade” e de notícias diárias de intenções governamentais de produção de cada vez mais retrocessos democráticos e nos direitos individuais, sociais, econômicos, culturais e comunitários, não faltam temas a merecer comentários e análises sob perspectiva jurídico-política devidamente contextualizada.

Na coluna de hoje, abordaremos a intervenção federal no Estado de Roraima, decretada pelo então Presidente da República Michel Temer em 08/12/2018 (Decreto nº 9.602, publicado no Diário Oficial na data de 10/12/2018).

De logo anunciamos aqui o nosso principal intuito, que será demonstrar como mais uma vez esse instituto jurídico da intervenção é utilizado, com desvio de finalidade, para alcançar objetivos outros que não aqueles preconizados pela Constituição com a sua previsão.

Com efeito, para além de verificarmos no Decreto nº 9.602 algumas das mesmas inconstitucionalidades detectadas no Decreto nº 9.288/2018, que formalizou a intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro (confira a análise da intervenção federal no Rio de Janeiro: A intervenção federal no Rio – Parte I, A Intervenção Federal no Rio – Parte II, A Intervenção Federal no Rio – Parte III e A intervenção federal no Rio – Final ), identificamos que a intervenção foi utilizada assumidamente como forma de antecipar posse do governador eleito em outubro, assinalada constitucionalmente para 01 de janeiro (antecipação de vinte dias).

São, em síntese, os seguintes apontamentos de inconstitucionalidade da intervenção decretada no Estado de Roraima: 1 – o decreto não possui fundamentação; 2 – suspensão da aplicabilidade de normas estaduais indeterminadas; 3 – ausência de especificação, no decreto, das condições de execução da intervenção.

 

1 O decreto não possui fundamentação

 

Os atos do Poder Público demandam a devida e adequada fundamentação, exigência inerente ao Estado Democrático de Direito.

Não é demais lembrar que se a Constituição expressamente exige que as decisões administrativas dos tribunais (exercício atípico, pelo Poder Judiciário, da função administrativa) sejam motivadas (Art. 93, inciso X), o que dizer das decisões administrativas e políticas do Poder Executivo.

Ressalte-se que, no caso, depara-se com ato da maior gravidade institucional, pois suspende temporariamente, ainda que temporariamente, a autonomia de um ente federativo. Tal ato, portanto, a despeito de poder ser praticado pelo Presidente da República, conforme lhe autoriza o Art. 84, inciso X como uma competência que lhe é privativa, não pode ser praticado de modo absolutamente discricionário, pois sujeito aos estreitos contornos constitucionais, do que também decorre, de forma ainda mais indispensável, a necessidade da devida e adequada fundamentação, até para viabilizar, de forma efetiva, o controle político do Congresso Nacional.

Pois bem, o Decreto nº 9.602, de 08 de dezembro de 2018, não possui qualquer fundamentação!

Limita-se a estabelecer que “É decretada intervenção federal no Estado de Roraima até 31 de dezembro de 2018, para, nos termos do art. 34, caput, inciso III, da Constituição, pôr termo a grave comprometimento da ordem pública.” (Art. 1º) e que “A intervenção de que trata o caput abrange todo o Poder Executivo do Estado de Roraima” (parágrafo único do Art. 1º).

Mas qual é o contexto fático que leva à conclusão de que o Estado de Roraima está em situação de grave comprometimento da ordem pública, a demandar o uso do mecanismo excepcional da intervenção federal como solução?

O decreto é absolutamente silente, razão pela qual é inconstitucional logo no seu nascedouro.

 

2 Inconstitucional suspensão da aplicabilidade de normas estaduais indeterminadas

 

O Decreto Presidencial nº 9.602/2018 estabelece ainda que “O Interventor fica subordinado ao Presidente da República e não está sujeito às normas estaduais que conflitarem com as medidas necessárias à execução da intervenção.”.

Noutras palavras: o decreto suspendeu a aplicabilidade de normas estaduais vigentes e eficazes, não declaradas inválidas ou inconstitucionais, não determinadas previamente, mas genericamente indicadas, que “conflitem” com as medidas necessárias à execução da intervenção, medidas que também não foram anunciadas.

A inconstitucionalidade é evidente: nem mesmo sob intervenção válida normas estaduais deixam de ser aplicáveis (a não ser que a causa da intervenção seja a suspensão dessas normas estaduais, o que não é o caso). Na intervenção, como bem esclarece o Professor José Afonso da Silva, ocorre a suspensão excepcional e temporária da autonomia do ente federativo, que passa a ter os seus negócios geridos pelo ente interventor. Ou seja: o ente interventor vai gerir os negócios do ente sob intervenção, dentro do arcabouço constitucional da divisão orgânica das funções estatais. Não há substituição do ordenamento jurídico do ente sob intervenção pelo ordenamento jurídico do ente interventor. Ao gerir os negócios do ente sob intervenção, o ente interventor está vinculado ao ordenamento jurídico como um todo, de acordo com a repartição constitucional de competências, devendo então observar as normas constitucionais e as normas estaduais e mesmo municipais, válidas e elaboradas de acordo com as suas delimitadas competências.

Portanto, inconstitucional a mais não poder nesse ponto também o decreto, ao querer dar prévia carta branca ao interventor em não observar normas estaduais válidas que, a juízo do interventor, “conflitem com os objetivos da execução da intervenção”, como se ao interventor e à intervenção fossem atribuídos poderes de declaração de inaplicabilidade, inconstitucionalidade, invalidade ou ineficácia de normas!

 

3 Ausência de especificação, no decreto, das condições de execução da intervenção

 

A Constituição Federal exige que decreto de intervenção especifique a amplitude, o prazo e as condições de execução da intervenção, bem como nomeação do interventor, se for o caso (Art. 36, § 1º).

O Decreto Presidencial nº 9.602/2018 delimita a amplitude (todo o Poder Executivo do Estado), estabelece o prazo (até 31/12/2018), nomeia interventor (Antonio Oliverio Garcia de Almeida, o então eleito Governador do Estado), mas não dispõe sobre as condições de execução da intervenção.

Afinal, dispor sobre isso é estabelecer, ao menos, as diretrizes das ações a ser planejadas e executadas com vistas ao alcance do objetivo. No caso, seria indicar, ainda que genericamente, quais medidas serão adotadas para “pôr termo a grave comprometimento da ordem pública” em Roraima.

E o que diz o Decreto sobre isso?

Nada!

A União, ao assumir a gestão do Estado de Roraima para “pôr termo a grave comprometimento da ordem pública”, simplesmente não sabe minimamente o que pretende fazer para alcançar esse resultado.

Não sabe ou não diz – como deveria dizer – no decreto, o que impede o controle efetivo pelo Congresso Nacional, até mesmo da adequação, para fins de seu controle político de conveniência e oportunidade.

 

4 A real finalidade da decretação da intervenção federal em Roraima: antecipar o início do Governo Estadual eleito

 

Convenhamos: não seria em vinte dias que uma intervenção federal conseguiria executar medidas necessárias e suficientes para “pôr termo a grave comprometimento da ordem pública”, grave comprometimento da ordem pública que sequer restou declinado e especificado no decreto de intervenção.

A nomeação do então governador eleito como interventor, efetuada no próprio decreto de intervenção, é revelador da verdadeira finalidade dessa intervenção: antecipar a “posse” do Governador eleito, marcada constitucionalmente para 01/01/2019.

Em boa verdade, a decretação da intervenção federal no Estado de Roraima resultou de um acordo do Governo Federal com a então Governadora do Estado e com o Governador eleito, como deixou bem claro o então Presidente Michel Temer:

 

“Temer chamou a medida de uma ‘intervenção negociada’, já que, segundo ele, foi feita em parceria com a governadora do Estado. O presidente afirmou ainda que essa foi a única maneira legal encontrada para ajudar a sanar as questões salariais de servidores locais, já que não encontrou formas de fornecer recursos a Roraima para ‘inviabilizar o movimento’.

— Nós queremos pacificar as questões de Roraima, é uma intervenção de comum acordo com a senhora governadora. Temos convicção de que com essa intervenção o movimento fique mais compreensivo, porque afinal, especialmente forças militares e todos aqueles que se dedicam a tarefas públicas têm que pensar na população de Roraima — disse Temer.” (reportagem do Jornal “O Globo”, postada na data de 07/12/2018)

 

Conclusões

 

Em si, o caso da inconstitucional decretação de intervenção federal no Estado de Roraima – a começar do claro desvio de finalidade do instituto jurídico da intervenção para respaldar um acordo político que antecipa posse de governador recém-eleito e suprime vinte dias de mandato eletivo da então governadora, que assentiu politicamente com a medida – não causou para aquela unidade da federação maiores problemas institucionais.

O grande problema, aí, é o precedente – somado à inconstitucional decretação da intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro, que por sinal foi concluída sem apresentar qualquer resultado objetivo e concreto e sem que sequer o Supremo Tribunal Federal tenha concluído o julgamento das ações propostas contra a sua ocorrência – que ganha corpo e ameaça institucionalmente ainda mais a autonomia dos estados brasileiros.

Com efeito, a porta foi aberta: no ano em que a Constituição de 1988 completou trinta anos de vigência, após portanto quase trinta anos sem que formalmente tivesse sido decretada ou executada qualquer intervenção federal, foram decretadas – inconstitucionalmente, por variados motivos -duas intervenções federais, sem maior resistência social, política ou jurídica.

Em tempos tão difíceis de alongada crise político-jurídica institucional, a tentação do abuso da prática de atos de intervenção federal estará à mão do Presidente da República de plantão, ante resistências políticas eventualmente lideradas por governadores de estados a medidas do Governo Federal.

Democracia e autonomias federativas em risco, mais um sinal de alerta permanente acionado!

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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