A maioridade do ECA

Havia uma escola pública numa capital com boa qualidade de vida onde era matriculada uma adolescente, 13 ou 14 anos de idade, que vivia fugindo. A menina chegava para “estudar” tendo o rostinho infantil maquiado, roupas sensuais, invariavelmente trajando saia curtíssima. Ela fingia um pouco que estava acompanhando as aulas e, no primeiro descuido dos funcionários da escola, desaparecia. Provavelmente freqüentava uma praça que ficava a poucos metros, onde era comum o uso de drogas baratas e a prostituição. Muito provavelmente a garota se entregava aos adultos para levar algum dinheiro para casa.

Aquela situação perdurou por alguns anos porque, a despeito do mau comportamento e das notas baixas da menina, a escola é obrigada a matriculá-la no ano seguinte. Essa é uma medida correta. O que não estava certo é que a mãe só aparecesse no início do ano letivo, para não perder a vaga e assegurar que a menina estivesse matriculada, ou quando era para pedir que abonassem as faltas dela — afinal, para garantir a Bolsa Família era necessário que a adolescente estivesse matriculada e 'frequentando' a escola.

Um dia, enfastiada de ser advertida verbalmente pelos coordenadores e direção da escola, a menina decidiu pedir transferência para outra unidade de ensino. Claro que não conseguiu, afinal era menor de idade e só a pessoa responsável por ela poderia fazer tal solicitação. Nesse caso, ela teria que devolver os livros. Como se sabe, o material do Programa Nacional do Livro Didático é reutilizável por outros alunos e só é reposto de quatro em quatro anos. Ao que ela respondeu malcriada e de pronto: tinha jogado os livros fora. Então foi advertida por isso e orientada a encontrar os livros, pois livros são livros, ora bolas, objetos importantes, e eles serviriam a outros colegas.

Passaram-se alguns dias e a aluna retornou à escola acompanhada da mãe e de um conselheiro tutelar. A mãe chegou esbravejando, afirmando que queria a transferência imediata da filha, enquanto o conselheiro, mais bravo ainda, repreendia a direção da escola, pois a menina havia passado por um “terrível” constrangimento. Aquele mesmo conselheiro que em época de eleição para o Conselho Tutelar se mostra tão compreensível e solícito…

É tudo verdade. A história não tem nada de ficção e se passou numa escola de Aracaju, que não precisa ser nomeada e muito menos citados os personagens. Veja a opinião da pessoa que dirigia a escola, não faz muito tempo, quando o episódio aconteceu: “Os adolescentes de hoje estão cheios de direitos, mas não se pode cobrar os deveres que eles têm. Há um excesso de liberdade supostamente garantido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que é uma lei maravilhosa, mas que em muitas situações não funciona, porque em contato com a dura realidade sofre distorções e acaba sendo usado para outros fins”.

O que o ex-diretor quer dizer é que, depois do ECA, a relação com as crianças e, principalmente, com os adolescentes, se melhorou em muitos aspectos, piorou em outros, chegando ao limite da hipocrisia: “Finge-se que a criança aprende desde cedo que é responsável, só que os malfeitores usam os adolescentes porque sabem que a lei os protege. Os próprios adolescentes se prevalecem disso”.

Ele lembra o caso de uma professora que teve o carro novo todo amassado, inclusive o teto, dentro do estacionamento da escola, uma outra escola. Quando os meninos foram levados à delegacia, o líder deles pôs os pés na mesa do delegado e desafiou a autoridade dizendo que não se podia fazer nada com ele, porque o ECA o protegia.

Constatado que cometeu um ato infracional, o adolescente pode, sim, ser apreendido e submetido a uma medida socioeducativa, que varia da advertência, a obrigação de reparar o dano, a prestação de serviços à comunidade, a liberdade assistida, a semiliberdade, até a internação. O que o exemplo mostra, além do desconhecimento do adolescente e do próprio delegado quanto à aplicação do ECA, é que o efeito psicológico da legislação está se sobrepondo à própria letra fria da lei. Os adolescentes que estão em conflito com a lei acham que estão imunes às medidas previstas. E muitas vezes as autoridades não sabem como aplicá-la.

O ECA acaba de fazer 21 anos. No dia 13 de julho de 1990 foi promulgado e, em outubro daquele ano, entrou em vigor. O momento é oportuno para discuti-lo.

O ECA não contempla com a devida profundidade, por exemplo, situações extremas como a vivida e sofrida por delinqüentes juvenis que agem e são caçados como verdadeiros bandidos. Três anos atrás, para citar um exemplo, houve o caso de um menor infrator conhecido como Pipita, que, tudo indica, era um psicopata ou sociopata que tinha prazer de matar e violentar meninas. Ele deveria ter sido apreendido, até para que a polícia desse exemplo. Mas, se o fosse, seria submetido a uma medida socioeducativa para ganhar a liberdade aos 21 anos? Estaria reabilitado para o convívio com a sociedade? Provavelmente não, por dois motivos: pelo que ele era e pelo que são as unidades de atendimento aos adolescentes infratores, devidamente previstas no ECA.

A Constituição Federal determina que as crianças e os adolescentes recebam tratamento prioritário por parte do Estado e da sociedade em geral. O ECA reafirma a necessidade de oferecer atenção diferenciada a essa parcela da população quando envolvidas em atos infracionais. Apesar dos avanços registrados nas últimas décadas, o Brasil ainda convive com graves violações de direitos nas unidades de internação socioeducativa, segundo revela a própria Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

É fundamental avançar na definição de uma política de atendimento que garanta estruturas, procedimentos e recursos humanos e orçamentários adequados em todas as fases do processo, desde a prevenção, a captura, o julgamento e a ressocialização. Levantamentos do Conselho Nacional de Justiça apontam ocorrência de graves violações de direitos nas unidades de atendimento, como ameaça à integridade física, violência psicológica, maus-tratos e tortura, além de negligência relacionada ao estado de saúde dos adolescentes. Há ainda denúncias de jovens privados de liberdade em locais inadequados, como delegacias, presídios e cadeias.

Defensor do ECA, Ariel de Castro Alves, Conselheiro do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), lembra que o maior avanço do Estatuto foi considerar crianças e adolescentes como “sujeitos de direito”. “A grande mudança de enfoque trazida pelo ECA é que antes, no Código de Menores, vigorava a doutrina da situação irregular. A menina explorada sexualmente ou a criança trabalhando no lixão, por exemplo, eram ‘objeto’ de intervenção dos adultos e do Estado por não serem considerados ‘sujeitos de direitos’. Com o ECA, quem está irregular é a família, o Estado e toda a sociedade que não garantiram a proteção integral às crianças e aos adolescentes. Portanto, o ECA simboliza um novo modelo de sociedade, algo que não ocorre de um dia para outro, mas é construído aos poucos e com muito esforço, principalmente através de orçamentos públicos e recursos que priorizem a área social e a cidadania”.

Reconhecido até pela Organização das Nações Unidas como a melhor legislação brasileira, e já atualizado oito vezes, talvez tenha chegado a hora de repensar a aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente à luz dos rápidos avanços da sociedade. Um desafio adjacente é consolidar os vários programas existentes no país, dos mais diferentes setores sociais, numa política pública nacional da criança e do adolescente. E, principalmente, que o País invista muito mais, e bem, na educação de qualidade.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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