A malfadada troca dos anéis de couro (série: Casos policiais)
Dentro da minha vivencia policial pude constatar, sem sombras de dúvidas alguma, que o Delegado de Polícia combate o delinqüente, protege o povo, investiga, aconselha, dirime conflitos, evita o crime, faz a paz, regula as relações sociais e às vezes até faz o inacreditável só para satisfazer os anseios das pessoas que o procura em busca de resolução das contendas mais esquisitas possíveis.
Dentre tantas as delegacias e cargos de direção que assumi em mais de duas décadas de carreira policial no estado de Sergipe, também trabalhei no Departamento de Atendimento aos Grupos Vulneráveis da capital.
Certo dia subiu até o meu gabinete um cidadão, homossexual assumido, querendo a providencia da Polícia para um fato inusitado, folclórico, que até parece ser uma piada, mas que foi bem real, com a seguinte conversa:
– Doutor, eu não sei nem por onde começar, pois é a primeira vez que estou diante de um Delegado. Asseverou.
– Fique tranqüilo cidadão, que você está perante a sua Policia protetora. Esta Delegacia foi criada para cuidar dos casos em que os homossexuais são vítimas, por isso esteja à vontade para falar do seu problema que estamos aqui para lhe fornecer solução. Falei.
– Sabe o que é doutor… Eu não sei nem se o senhor vai poder me ajudar…
– Continue cidadão, mas sem muitas delongas. Vá direto ao assunto!…
– É que eu acertei com um amigo que também é gay pra gente trocar, daí tiramos a sorte no par ou impar para ver quem ia primeiro, então ele ganhou e foi, mas depois não me deixou ir…
Diante do caso esdrúxulo, tive que me conter para não dar uma sonora gargalhada e continuei me fazendo de desentendido dando asas a história:
– Cidadão, você esta complicando demais, seja mais objetivo. Vocês acertaram para trocar o quê?… Ele foi primeiro e depois não deixou você ir para onde?…
– A gente acertou pra trocar os anéis de couro, aí ele comeu o meu primeiro e depois não quis me dar o dele…
Morrendo de rir por dentro, dei mais corda para aquela situação hilária:
– Mas vocês colocam cada apelido no pobre do ânus. Por que anel de couro?…
– Porque ele pode ficar em volta do pênis ou do dedo e assim vira um verdadeiro anel de couro… Também tem outros apelidos e pode ser chamado de aro, ás de copa, rabo, rosquinha, dengoso, cheiroso… E o mais popular que todo mundo conhece, mas eu acho feio e chocante só aquelas duas letras para um órgão tão importante, por isso gosto de usar o apelido de anel de couro, pois além de tudo o termo sugere selar uma aliança entre as partes…
– Sei!… Muito interessante cidadão, mas com essa troca de anéis de couro entre você e seu amigo não houve crime algum e por isso a Polícia não tem como interferir no caso.
– Eu sabia!… Sempre o mais fraco é prejudicado. Estou muito aborrecido porque além de tudo ele fica rindo da minha cara quando a gente se encontra. Vou terminar perdendo a paciência e fazendo uma besteira nele.
Durante todos esses anos de atuação policial, enfrentando o perigo ou realizando investigações importantíssimas, além de funcionar também como mediador, espécie de Juiz da primeira causa em milhares de contendas sociais, me senti acuado em deixar de tentar resolver aquele caso que demonstrava ser de fácil resolução ou até mesmo pela curiosidade da novidade, resolvi então interferir no entrave que não era da alçada policial ou de alçada alguma, mandando uma intimação para a parte adversa e, no dia e hora marcados la estavam os dois gays no meu gabinete para que eu resolvesse a estranha troca de “anéis de couro” não concretizada.
Depois da fala e das explicações da acusação que repetiu o acordo feito e a quebra do contrato verbal existente entre as partes, então falou o acusado:
– Doutor, a história é essa mesmo, mas eu não dei porque já estava cansado, gozei e perdi a vontade…
Como vi que se tratava de pessoa menos esclarecida e de fácil traquejo, então realizei o famoso jus inrolandis no jargão policial, palavras latinas inventadas que significam o “direito de enrolar”:
– Você não é homem não cidadão?… O homem que é homem independente da sua opção sexual cumpre com a sua palavra… Você fez um acordo e não cumpriu… Você enganou o seu colega… Você cometeu um “estelionato carnal”, uma “fraude contratual anal”… Por isso eu posso instaurar um Inquérito Policial por tais crimes e solicitar a sua prisão preventiva à Justiça…
– Não doutor… A minha liberdade é a coisa mais importante que eu tenho na vida, por isso eu me comprometo em cumprir a minha parte do acordo… Basta que ele acerte a hora e o local que eu dou pra ele com todo prazer… Até mais de uma vez que ele queira…
Daí pensando que já tinha sanado o problema emendei:
-Tudo resolvido!… Podem ir embora e marquem o local lá fora que eu tenho mais o que fazer.
Mas aí a suposta vítima interveio inconformada:
– Agora eu também não quero mais não, doutor…
– E o que é que você quer finalmente cidadão?… Você veio incomodar a Policia com qual objetivo?… (falei já chateado e arrependido em ter me metido a resolver aquela safadeza).
– Eu quero ser indenizado pelo que ele me fez!…
Parei para contar até dez, suspirei, tomei fôlego, recobrei a calma e levei na brincadeira indagando:
– E quanto é que vale o seu anel de couro cidadão?… (na verdade falei no popular e em voz áspera)
– Se ele me pagar uma oncinha, está resolvido o problema e a gente até volta a amizade de antes!…
– Você paga cinqüenta reais pelo anel de couro dele?… (falei também no popular)
– Não vale não doutor, o senhor precisa ver…
– Cidadão, eu não preciso e nem quero ver nada, ouviu?… Eu estou lhe perguntando se você paga o que ele está pedindo… Então você responda se referindo somente a isso, compreendido?…
– Desculpe doutor, mas cinqüenta reais eu não pago, pois está muito caro. Só dou vinte reais e ainda estou pagando muito…
E então interferiu novamente o pretenso lesado insatisfeito:
– Assim também ele está menosprezando demais o meu anel de couro, doutor… Eu aceito quarenta reais…
Diante do espontâneo leilão, era a deixa que eu precisava como Juiz da causa para bater o martelo:
– Vamos terminar com essa pouca vergonha dentro de uma Delegacia de Polícia… Nem um nem outro. Trinta reais é a sentença final.
Depois de aceito o acordo e selada a paz, o suposto acusado entregou de bom grado o dinheiro ao “lesado” que também se mostrou satisfeito com a quantia recebida, e aí complementei para descontrair e encerrar a audiência:
– Da próxima vez que vocês vierem aqui com um problema desse tipo, eu coloco os dois dentro do xadrez com o estuprador conhecido por “Tião Pé-de-Mesa” que está há mais de dois meses sem ver mulher.
Eles riram e um deles rebateu:
– Desse jeito é melhor a gente quebrar o acordo agora mesmo, doutor!…
Autor: Archimedes Marques – Delegado de Policia Civil no estado de Sergipe. (Pós-Graduado em Gestão Estratégica de Segurança Pública pela UFS)
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