Invariavelmente, ela virá, para todos os que vivem. Que seria da vida sem a morte? É o seu oposto, a sua negação o que dá sentido à vida, de certa forma. Um dia, em breve, ela se acaba, então, por favor, apressem-se. Por que, afinal, tememos tanto a morte e a negligenciamos em nossa vida? A Indesejada das Gentes, ceifadora com sua foice, face obscura da vida. A única certeza que temos na vida é o seu fim iminente.
A morte é o fim e é também um outro começo. Um ciclo precisa se encerrar para que outro comece. Hoje, por exemplo, morre um ano, para que outro comece. O que morre abre espaço para o que irá nascer. Quando é tempo de plantar, agricultor limpa a terra, revira tudo, para semear as próximas plantas que brotarão. O fim. Depois o começo.
Em muitas religiões ao redor do mundo, a Morte é cultuada como parte da vida. Há quase sempre as trindades formadas pela Destruição, Nascimento e Manutenção. No cristianismo, por exemplo, a Morte é representada pelo Espírito Santo, fogo sagrado que destrói o mal e renova os fiéis. O Nascimento é o próprio Messias, o Cristo que nasceu entre os humanos, e a Vida, Deus em si mesmo.
Nas religiões dármicas – e em outras crenças reencarnacionistas – há um elemento cíclico e tudo isso é posto para girar. A Morte dá ensejo há um novo Nascimento, uma Vida que irá se completar na Morte e reiniciar, girando a Roda do Dharma, até que um dia se encontre a Iluminação, o estado de Budeidade, e se abandone essa roda de reencarnações e sofrimentos.
A mais bela representação do fim: Shiva Natajara dança sobre o mundo. Com os pés descalços, o deus renovador sente o que deve ser removido e dança sobre a ignorância humana e todo o mal que deve ser dissipado. Depois da dança sagrada, Brahma pode recriar o mundo, que será mantido por Vishnu. Sem a sagrada dança destruidora, não pode haver renovação.
Por que temer a Morte, então? As pessoas morrem, os bichos, as coisas, os relacionamentos, as histórias, as memórias, as casas e as plantas morem. Morre um texto. Morre uma palavra. Morre um dia e morre um ano. Porque outros virão, outras vidas.
Quando, em 31 de dezembro, morre um ano, enterra consigo tudo o que se viveu e não se viveu, para que nasça outro ano e mil possibilidades. Seria muito penoso sair por aí carregamento em nossas costas os anos mortos de nossas vidas. Deixem que os mortos enterrem seus mortos. Chorar o luto e seguir adiante. Quando fazemos uma escolha, escolhemos entre a vida e a morte: escolhemos o que vamos viver e entregamos todas as demais possibilidades à morte. E é preciso deixá-las morrer, porque pensar “e se…” é sofrimento desnecessário.
Me interpelou outro dia um amigo: há muita coragem em deixar tanta coisa para trás. Mas são coisas mortas, pensei cá comigo. Coragem é sair por aí carregando consigo tanta coisa que já morreu e apodrece: morreu um relacionamento, um emprego, uma casa, uma vida, mas carrego-os por hábito de tê-los comigo. Shiva me livre de tanto peso morto! Não adianta pôr os cadáveres no armário, espalhar perfume pela casa: as coisas mortas apodrecem.
Encarar a morte face-a-face, sorrir-lhe: já é tempo de mudança. Shiva dança e destrói o que é desnecessário. O sagrado fogo transmuta o velho. Soltar a mão gelada do que morreu e saltar. Um trapezista precisa soltar as mãos e atirar-se em direção à morte para encontrar outros trapézios, outras mãos. Ou escolher estacionar em seu próprio trapézio, balançando eternamente em solidão – o que não deixa de ser um tipo de morte também.
Um ano acaba hoje: dia de comemorar a Sagrada Morte. Hora de saltar. Shiva Natajara se enfeita para a dança. O fogo arde em algum lugar sagrado. Momento de pôr no altar todos os mortos a serem celebrados. Que venha o que é novo.