A pandemia de coronavírus e a morte inesperada

Simone Evelin F de S Luna
Mestranda em História – PPGHCS/COC/FIOCRUZ
Bolsista Capes

Corpos de vítimas de covid-19 são enterrados em valas comuns em Manaus. Foto: Chico Batata. Fonte: G1, 22 de abril de 2020.

Norbert Elias escreveu que a morte é um problema dos vivos. A morte é um tabu. As sociedades sempre encontram um modo de ressignificá-la através de práticas e rituais que ajudam os sobreviventes a lidar com a finitude do outro, mas que também é a sua própria finitude ali encarada. A morte precisa seguir um processo bem definido, inteligível. É preciso fazer preparativos, preparar rituais, chorar, viver o luto, se despedir. O tempo para processar e vivenciar essa sequência fúnebre é essencial para a normalidade da morte. Embora inevitável, lidamos com ela de maneira programada, planejada, dentro do possível.

As diferentes sociedades desde cedo instituíram modos de lidar com a morte e os mortos. Nas sociedades europeias ocidentais, a partir do século IV, as necrópoles vão dando lugar aos enterros intramuros, dentro das igrejas e seu entorno. A proximidade com a morte e os corpos mortos é naturalizada, a identidade do morto é estampada nos túmulos, prática retomada no século XII. Feiras e reuniões aconteciam em cemitérios na Idade Média promovendo intenso convívio entre vivos e mortos. Acostumamo-nos, então, a trazer a morte para perto de nós e a revisitar nossos mortos.
Entretanto, em momentos fora da normalidade, os ritos são impedidos de acontecer, as práticas fúnebres desaparecem, o luto deixa de ter seu tempo de maturação, a despedida é impossibilitada. As epidemias são grandes exemplos de momentos em que a morte se desestabiliza e em que os ritos que deveriam dar destino aos mortos não acontecem e o conforto que as práticas funerárias dão aos vivos deixam de existir. Essa falta de ritualística gera medo e insegurança.
A epidemia do novo coronavírus coloca em evidência esse tipo de situação. O grande número de mortos, a impossibilidade de velá-los, as cremações em série e as valas comuns, a coletividade impessoal ameaçando a individualidade do morto. Pela própria condição epidemiológica da doença, o fato de ser contagiosa afasta outras pessoas de prestarem condolências e dar apoio pessoalmente. As valas comuns desindividualizam aquele que já viveu. Não há lápides, fotos, epitáfios. Um amontoado de corpos de pessoas que eram mães, filhos, namorados, avós, todos sem direito a uma sepultura digna. Sem lugar para os sobreviventes chorarem e revisitarem seus mortos.
A morte repentina, a morte inesperada é um dos principais medos do ser humano. É a morte não pensada, não planejada, sem desejos, sem testamentos, sem demandas. É a morte que abala e traumatiza as sociedades. Uma epidemia serve para evidenciar os discursos falaciosos do sistema, para mostrar que as bases do sistema capitalista estão assentadas em areia movediça. Ao contrário das danças macabras da Idade Média que imprimiam que a morte era igual para todos, ela não é. Assim como a vida, a morte também é desigual e reflete os absurdos e conflitos de classe. Ou você acha que ricos acabam em valas comuns? Ou que os ricos são tão afetados pela epidemia quanto o pobre da favela? Nada mais ilustrativo do que constatar que a doença desembarcou no país juntamente com a classe que pode viajar para a Europa.
Um momento como esse será lembrado na história pelo número de mortes que causou, “a grande pandemia do século XXI”, talvez. O final dessa pandemia ainda está longe, mas certamente o pós-epidemia será tempo de transformações e reflexões. Seremos mais empáticos ou seremos mais egoístas? Os governos preservarão o bem estar social ou aprofundarão seu autoritarismo? Aguardemos.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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