A REINVENÇÃO DA QUADRILHA

Tem sido inevitável ligar a Quadrilha junina, dança da tradição sergipana e nordestina, com a dança francesa do mesmo nome, dos salões nobres. Em matéria de cultura popular é sempre uma temeridade fixar origens, mesmo quando os arquétipos indicam a pretendida filiação. No caso da Quadrilha, então, haveria pelo menos três momentos testemunhados, registrados, vividos pelos sergipanos: o primeiro, quando o Imperador Pedro II, a Imperatriz, comitiva e autoridades locais dançaram uma quadrilha, em janeiro de 1860; a segunda, quando a quadrilha tomou forma de dança e de folguedo, obrigatória nas festas de São João; a terceira, a quadrilha transformada em corpo de baile, como é vista atualmente. Nos tempos de Pedro II a Quadrilha era mais uma jornada, uma parte, do que uma dança completa, estruturada, como foi abrasileirada no século seguinte. A dança aconteceu na noite de 13 de janeiro, nos salões do improvisado Paço Imperial, o prédio que ficou conhecido como sede da Delegacia Fiscal, situado na praça Fausto Cardoso, esquina com a atual avenida Rio Branco. O Imperador trajava o uniforme de Almirante e dançou várias “quadrilhas”, uma com D. Clemência Galvão, mulher do presidente da Província, outra com a filha do senador Diniz, a terceira com Ana Barros Pimentel, mulher do deputado Barros Pimentel, e, finalmente, com Mariana Freitas, mulher do Tenente Coronel Freitas. A Imperatriz, trajava vestido de filó azul claro, com rendas largas de Bruxelas, em guarnição, uma grinalda de flores brancas, a imitação de cardamomo, e no colo um fio e pérolas, dançou as quatro “quadrilhas” com o Ministro do Império, o presidente da Província Manoel da Cunha Galvão, com o senador Diniz e com o deputado Barros Pimentel. A música ficou a cargo da banda do navio Apa, que conduzia a comitiva imperial na sua visita a Sergipe. Quatro pares foram vis-avis com o Imperador e mais quatro com a Imperatriz. O casal imperial permaneceu na festa das 9:30 até 1 hora da manhã, e o baile continuou até as 4 horas da manhã, tendo sido contadas pelo menos 30 senhoras, algumas com vestidos de muito bom gosto, como ficou no relato da visita. Como parte das festas juninas, cujo calendário tem início com o trezenário de Santo Antonio, no dia 1º de junho, terminando em São Pedro, dia 29, passando pela festa maior, o São João, no dia 24, a Quadrilha era obrigatória em todos os locais transformados em arraiais. Homens e mulheres vestidos a caráter, com chitas e brins, enfeitados com fitas coloridas, chapéus, alpercatas, alguns enfeites de couro, formando um grupo de pares, que era invariavelmente acrescido dos personagens do casamento: a noiva grávida, o noivo fujão, o pai da noiva furioso e armado, um padre na expectativa do casamento, (ou um juiz, em algumas quadrilhas). O marcador formava o primeiro par e cumpria duas funções, a de dançar como os demais componentes do grupo e o de marcar a dança, gritando os próximos passos, num francês abrasileirado. A música era uma peça única, uma marchinha, com pequena variação para evoluções especiais dos pares, baião, xote e xaxado. Com o tempo os trios, chamados de Pé de Serra, que acompanhavam os grupos folclóricos em suas apresentações, passaram a fazer uma trilha mais movimentada, emendando a dança com um baile, que começava entre os próprios dançarinos e depois aumentava com a participação dos festeiros em geral. Durante décadas, tanto no interior, quanto em Aracaju, a Quadrilha manteve suas linhas básicas. A cena do casamento, tratada teatralmente, concorria para a folclorização da Quadrilha, dando-lhe uma marca complementar que fazia a distinção entre o folguedo e a velha dança francesa. O molde servia nas escolas, entre crianças e entre jovens, como ganhava expressão social, nos locais de festas público, como a Vila João Costa, a rua de São João, a Caixa d’água, a Baixa Fria, os arraiais montados na rua Rio Grande do Sul, no Santos Dumont, na Suiça, antes do patrocínio oficial e do interesse turístico. As modificações foram inevitáveis, com a inspiração temática, o vestuário, o abandono da marcação antiga das partes e sua substituição por novos ritmos, cada qual com sua música. A Quadrilha ganhou, então, por volta dos anos de 1970/1980 um sotaque novo, mais típico, trocando o atabalhoado da imitação, por uma expressão estética original, ainda que dentro de um padrão regionalizado. E foi a partir das mudanças que a Quadrilha chegou ao seu ponto atual, como corpo de baile, um balé popular, autêntico como linguagem rústica, explorando a coreografia forte dos bailados. A Quadrilha foi reinventada e quem viu, na festa do ano passado, as apresentações da Unidos em Asa Branca, Arrasta Pé, Maracangaia, Forrobodó, e tantas outras, pôde encher os olhos de uma beleza múltipla: ritmo, canto, representação, dança, cores. Uma festa dentro da festa. O grupo que forma a quadrilha Arrasta Pé guarda, ainda, os aportes artísticos da Opera do Milho, espetáculo genial, feito em Sergipe e que podia ser visto em qualquer parte, mas lamentavelmente extinto. Um verdadeiro crime, perpetrado contra a arte sergipana. A Quadrilha Maracangaia tem um marcado clássico, Gilberto Lima, que muitas vezes chega a sacrificar a sua própria exibição como dançarino, para resguardar a harmonia do conjunto. Outro elemento importante da quadrilha é Elton Coelho, mais do que um divulgador, um dirigente, estimulando a que sejam mantidos os contornos da tradição. Já a Quadrilha Unidos de Asa Branca preferiu romper com a tradição e fazer da própria história da dança o motivo principal de suas apresentações. Assim, tanto na rua de São João, quanto no Centro de Criatividades, a Unidos em Asa Branca deu show de beleza, leveza, mostrando no palco duas cenas: a do passado, com dançarinos vestidos a europeus, com suas mesuras e refinamentos, e a da tomada da dança pelos trabalhadores rurais, com suas roupas simples, seus instrumentos de trabalho, misturando-os na mesma alegria. A apresentação desta quadrilha é um dos mais belos momentos artísticos juninos, um espetáculo irrepreensível, que demonstra o que é possível recriar na mesma fonte da tradição cultural do Nordeste, que é o Brasil velho, onde a diversidade alimenta a criatividade. Reinventada, a Quadrilha pode ainda mudar, cada vez mais, para melhor, como tem feito de Dom Pedro II até hoje. Permitida a reprodução desde que citada a fonte “Pesquise – Pesquisa de Sergipe / InfoNet”

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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