Se ninguém tinha dúvida da masculinidade de Jeansenpater do Divinamor Faria, o que se desconfiava na cúria era da firmeza da sua vocação para o sacerdócio. O próprio bispo da cidade, Dom Matias Tupinambá, em resposta a uma sua consulta, recomendou-lhe que meditasse, orasse bastante, antes de assumir a sua vocação. Não que lhe faltasse firmeza em sua fé e religiosidade, mas o que mais chamava atenção dos padres ao seu redor, e do bispo também, é que Jeansenpater Divinamor não gostava de se submeter à obediência de ninguém. Chegou inclusive a criar um embaraço com o prelado porque apoiara um padre que estava abençoando casamentos de divorciados. Ora, a liturgia da Igreja assim mão o permitia. Coisas da Igreja, coisas não entendidas em plena modernidade, mas que enquanto “mater et magistra”, têm que ser aceitas por aqueles que nela vivem, aí incluídos o clero, o laicato e todo o corpo de fiéis. Mas Jeansenpater Faria, porque vira um seu irmão excluído de uma bênção nupcial, desafiou o bispo num programa de auditório pelo rádio, a provar-lhe teologicamente que tal bênção se enquadrava nos ensinamentos dos santos apóstolos. Porque nunca lhe faltavam câmaras, jornais e microfones em suas apostasias, Jean Divinamor, com muito escândalo e barulho, acusou o prelado, Dom Matias Tupinambá, a quem devia como leigo o respeito e até a obediência, denunciando-lhe o excesso de conservadorismo, de ser contra a modernidade, tudo aquilo que fazia dividir o clero e afastar o fiel em demanda de seitas pouco confiáveis. Por este tempo ainda não virara importante figura do laicato local, e a coisa não tomaria desfecho mais lastimável, não fosse a promoção do bispo a arcebispo de uma capital mais importante, sendo substituído Dom Eratóstenes Montenegro, não afeito a discussões, por mais tolerante, que o pacificou, perdoou e abençoou, como assim deve ser aos pecadores arrependidos. Mas, aquele seu arrependimento era fingido diante do novo bispo. Não convinha brigar com a Igreja, daí aceitar o gesto de boa vontade do novo chefe e pastor. Todavia, como dito anteriormente, sua fé e religiosidade só eram superadas pelo seu empedernido inconformismo em seguir ordens e determinações. Era incapaz de se submeter a uma argumentação superior de quem quer que fosse se isto o contrariasse. Obedecer não era o seu forte. Aliás, o seu forte era justamente descumprir ordens, desrespeitando-as, sobretudo, com escândalos, bate-bocas e confusão. Era um mestre do escarcéu e da bagunça, indivíduo incapaz de conviver e se submeter à hierarquia, tipo eclesial ou militar. Neste ponto, como sói comum naquele tempo, Jeansenpater passou a adorar os militares, amor que se tornaria depois em ódio por exclusiva conveniência. Houve um tempo, é verdade, que ensaiara um papel de vivandeira, mas como suas idéias encontraram rejeição por barreira, foi tido depois como um elemento perigoso e excluído de reuniões e conspirações. Na verdade não foram as idéias, mas as práticas que o afastaram dos militares. No inicio, logo depois do golpe militar de 1964, era todo aplauso e aprovação. Naquele tempo era comum vê-lo junto ao oficialato nas festas e comemorações, regadas a muitos discursos patrióticos de amor febril pelo Brasil, onde os feitos inigualáveis de nossa histórica soberania se alternavam com muitos brindes de goles de whisky importado. Justamente quando a importação era proibida, mas não faltava Whisky White Horse e Ballantynes atravessando as nossas fronteiras para o acompanhamento das muitas odes e alocuções. Discursos em que os nossos heróis suplantavam quaisquer heróis além fronteiras, e os nossos uniformes militares constituíam melhor nobreza que qualquer outro na história universal. E Jeansenpater que era muito jovem então, por não dispor de muito cabedal cultural para se expor como orador, especializou-se em vibrante declamador do vasto poetar cívico-militar nos saraus e rega-bofes de então, recebendo muitas palmas e louvores. Chegava a se exibir ornado de fitas verde e amarelo nos ambientes em que a farda era mais reverenciada que a toga e a batina. E Jeansenpater Faria ao tornar-se agora um assíduo cortejador da farda, e esquecendo a tonsura e a batina, passou a verberar os seus antigos colegas da JEC (Juventude Estudantil Católica), denunciando-os por atividades subversivas. Era como se Jeansenpater tivesse parido a própria revolução. O que reforçava o seu apelido, já comentado em surdina, de Jean Patifaria. Com razão ou não deste apelido, dos quatro colegas da incursão à Ladeira da Montanha, em feito contado anteriormente, só Jeansenpater aderira de armas e bagagens ao novo regime. Se o livre pensador Natanael Miranda, o Natanas, fugira para o Chile e depois virara alto executivo atuando na Place Vendôme em Paris, Adamastor Pedroso, vulgo Maresia, continuava sua vidinha de farras nos cabarés e prostíbulos. Virara exímio pé-de-ouro no tango, no bolero e na gafieira. Já o colega da JEC, Celso Augusto da Purificação, avesso a meneios e gingados, enveredara nos movimentos estudantis, clandestinos e necessários, em defesa da democracia e da liberdade de expressão. Como tais movimentos estavam postos fora da lei, Purificação chegara a ser preso e conduzido para a sede da Polícia Federal, junto com outros dois colegas, só porque estava entregando panfletos contra a ditadura no centro comercial da cidade. Desconfiou-se então que fora Jeansenpater o informante, afinal ninguém entendera a sua presença nos corredores da PF, conduzindo o próprio genitor de Celso da Purificação que berrava ensandecido contra o filho em desapoio: – Por que não fuzilam logo estes pestes comunistas? Coisas daquele tempo, coisas de todos os tempos, em que há pais também que denigrem toda uma descendência. Mas, nada ficaria provado contra Divinamor Faria, afinal fora o seu prestígio que liberara a custódia dos três panfleteiros, que retornaram trêmulos e chorosos para suas casas. Comportamento eminentemente natural naquele tempo de muitas sombras na história pátria, quando a insegurança reinante ensejava perseguições, violências e acertos de desafetos, aliado a carreirismos, sabujices e espertezas. E Jeansenpater como estava vicejando muito bem neste lusco-fusco autoritário, angariava com isso muitos críticos que o viam como um Jean Patifaria. Isto, porém, era intriga menor de invejosos de seu sucesso junto aos poderosos que o reverenciavam como Jean Divinamor, o orador que embevecia multidões com suas perorações laudatórias. Discursos que eram perfumados com versos de Olavo Bilac, Casimiro de Abreu e Gonçalves Dias, além de canções marciais, onde sua voz falseteada louvava o “Auriverde pendão da minha terra que a brisa do Brasil beija e balança”, sempre utilizado com mote final de suas falações arrepiantes e angustiantes. Falações que arrepiavam de civismo as vivandeiras assanhadas nos bivaques dos granadeiros, mas que angustiavam os de maior cultura. Afinal o célebre verso de Castro Alves fora concebido para denunciar a negritude da escravidão, e estava agora mal empregado em releitura ufanista, louvando um país que separava irmãos, imerso cada vez mais nas trevas que enclausuravam a liberdade. Mas, à medida que a liberdade declinava, o prestígio de Jeansenpater Faria crescia a cada dia. Por que pensar agora no caminho de Santiago, na tonsura e na batina? Não é melhor agora à farda bater continência fingindo subserviência? Assim, tornara-se, bem rápido, um elemento de alta confiança e confidência do sistema. Tanto que chegara a presidir, em sua cidade, a campanha “Ouro pelo bem do Brasil”. Campanha cujo desfecho o inseriria mais uma vez numa confusão mal explicada, reforçando o velho apelido, ainda pouco repetido, de Jean Patifaria.
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