Para os que a lembram, a campanha “Ouro para o bem do Brasil” surgira no princípio do regime autoritário, aproveitando um dos momentos em que a maioria da população estava muito feliz com o começo da dinastia dos Generais Presidentes. Hoje, passados muitos anos, ninguém irá dizer que naquele tempo se sentira feliz. Ninguém se ousa réu confesso, e prefere entender aquele tempo como uma bebedeira inconseqüente, tanto que tudo se apagou numa anistia mal explicada, por bem assumida. Um perigo, aliás, porque o mal que não é coibido exemplarmente, pode querer um dia rebrotar. Igual a estas campanhas de ajuda ao país. Sim, porque volta e meia elas retornam, com novas motivações. No tempo da 2ª Grande Guerra, por exemplo, várias passeatas surgiram país a fora em apoio ao Ditador Getúlio Vargas por ter declarado guerra às potências do Eixo Berlin – Roma – Tóquio. Há inclusive relatos antigos de uma passeata na Bahia em que a estudantada carregando uma enorme bandeira do Brasil angariava doações em dinheiro em ajuda dos nossos soldados combatentes, calçados em tamancos de madeira nos campos gelados italianos. Dizia-se que o dinheiro era para comprar botas e equipamentos para os nossos heróicos pracinhas. Semi-igual ou um arremedo quase-igual, à campanha “Ouro para o bem do Brasil”, conduzida na seccional do Estado por Jeansenpater do Divinamor Faria. A campanha era nacional e surgira com o objetivo de angariar fundos para que pudéssemos resgatar, enquanto país, a nossa dívida externa, irresponsavelmente acrescida por governos corruptos e incompetentes, tudo o que era agora o maior discurso de Jeansenpater do Divinamor Faria, convertido em patriota por excelência. Naquele tempo ainda não se repetia do escritor e lexicógrafo inglês Samuel Johnson (1709 – 1784), que sentenciara: “o patriotismo é o último refúgio de um canalha”. Mesmo porque, todo mundo contraíra este alucinógeno e pandêmico patriotismo. Em meio a este febril amor à pátria, chegou-nos o emissário representante da Campanha “Ouro para o bem do Brasil”, Coronel da reserva Oromar Nogueira Pintassilgo Cannaris. O Coronel Cannaris, como assim era mais conhecido, era um homem atlético, bastante alto, cabelo cortado à moda marcial americana, voz firme e decidida, um orador de muita eloqüência, muito ciente da sua missão enquanto responsável pela campanha arrecadatória de ouro para o progresso do nosso país. Jean Divinamor o recebera na própria pista do aeroporto, junto com todas as autoridades civis, militares e eclesiásticas da região. Após os cumprimentos, sorrisos e abraços de praxe, a comitiva seguiu em demanda da residência de inverno do Governador do Estado, onde todos se refestelaram num lauto almoço em que não faltara maniçoba, sarapatel, buchada de carneiro, beiju molhado no leite de coco adocicado, sorvete de mangaba, e a especial cocada-puxa importada das bandas orientais sergipanas. Como em toda missão que se inseria, Jean Divinamor era todo amor, sobretudo junto ao Coronel Cannaris, não o largando nem quando este por imperativo natural destes petiscos, tinha necessidade de visitar algumas vezes à privada. Aliás, neste particular, Jeansenpater preferia ser companhia de toalete, mesmo que o acusassem de puxa-saquismo. Achava que naquela atmosfera fecal era mais fácil trocar idéias e ampliar relações, porquanto mais íntimo e menos atropelado por circunstantes. E naquela circunstância em particular, era preciso combinar o protocolo da reunião, acertar os últimos detalhes de discursos e procedimentos, afinal o tempo corria rápido e logo mais à noite aconteceria no Auditório do Colégio Granadeiro Bismarck a coleta das doações em ouro para a campanha de soerguimento da nação. Assim nenhum tempo podia ser perdido, mesmo aquele despendido em latrinas e mictórios. Sobretudo porque era pretensão de Jean Divinamor, em retornando orador vitorioso ao colégio de onde fora expulso, fazer uma “doação”, a título de incentivo e motivação. “Doação” que estaria bem acima das suas reais possibilidades, daí porque solicitava que encerrada a coleta, a referida “doação” lhe fosse devolvida. Tratava-se, segundo Jeansenpater uma escaramuça inocente e sem maiores prejuízos. Ele fingiria doar um relógio Rolex de ouro, em meio ao próprio discurso, jóia que ao final da solenidade teria que ser retirado do montante, sem que ninguém soubesse, porque o tal relógio de ouro não tinha nada, e porque era apenas um Rolex falsificado da feirinha do Paraguai. Desnecessário dizer que, em meio ao despejo da maniçoba que já estava a sair, o Coronel bufou de raiva, exasperado com tal proposta indecente. E o Coronel ficara uma fera. Sem mesmo se servir do rolo de papel higiênico, o militar se ergueu do vaso com as calças arriadas tentando esganar o mofino Jeansenpater que tentava de todos os meios convence-lo da inocência de sua proposta. Uma proposta mais do que corrupta, menos para um Jean Patifaria, que a achara genial e que, segundo ele, suscitaria muitas doações. Mas o Coronel Oromar Nogueira Pintassilgo Cannaris era um homem sério. Aliás, com um nome deste ninguém impunemente pode cometer desatinos. Era um antigo herói de guerra com muitas condecorações que se orgulhava do próprio nome. Jamais alguém o vira utilizar abreviaturas em suas assinaturas e todos os seus subordinados tinham que pronunciá-lo por inteiro, sob pena de não o satisfazer em plenitude. Tivera uma carreira militar magnífica em honraria e ousadia. Somente não atingira o generalato porque sua retidão lhe criara muito desafeto no seio da tropa e assim fora tolhido pela reforma compulsória. Reforma a que se submetera disciplinadamente, mas que o injustiçara como soldado. E como soldado, afeito à disciplina e o ascetismo castrense, jamais se deixaria corromper, daí porque abraçara aquela campanha de doação de ouro para o bem do Brasil, por real amor e civismo. Justamente neste momento civilista em que se fustigava na nação todo tipo de empulhação, não seria ele envolvido em semelhante deslize. E Jeansenpater, o único responsável pela desonra em proposta, desapareceu, criando um problema inclusive, porque ele e o Coronel Cannaris seriam os principais oradores. Felizmente, como acontece nestes eventos, sempre há alguém que adora um microfone. E naquela cidade o Dr. Teodorico Polifemo era um destes oradores sempre disponíveis. Magro e muito comprido, exibia estatura sinuosa e curva com o ventre buchudo e o ombro em dromedário. Seria um longo e curvilíneo ponto de interrogação não fossem um olho cego e caído, e o outro levemente aberto, em meio a ralos cabelos em desalinho. Dir-se-lhe-ia uma escova de dente usada, por maior aparência, e bem maior impertinência a um herói da Odisséia. Verboso, muito eloqüente, era um orador bastante requisitado, mormente em aniversários de bonecas, batizados de infantes, e enterros mal carpidos. Tribuno de voz firme, pronúncia exaltada em eco e com mãos reverberantes, Dr. Polifemo chegava muitas vezes a ficar indócil quando não lhe convocavam para em odes polifônicas, ilustrar solenidades, afinal sua sabedoria superava a dos gregos, seu lirismo punha por terra qualquer jurisconsulto romano, sua dialética invejava Hegel, Marx e toda filosofia germânica, e o seu esprit de finesse dava aulas à enciclopédia francesa, além de voz empostada de radialista. Ninguém melhor, portanto, que o velho orador e locutor, para agora substituir Jeansenpater, afinal o próprio Dr. Polifemo se assanhara todo se candidatando para tal. Escusável dizer que a solenidade foi uma maravilha. O Coronel Oromar Nogueira Pintassilgo Cannaris, jamais fora tão enaltecido num discurso. Dr. Polifemo o nivelara com Caxias, Osório e Barroso. Diante dos seus feitos ali decantados, nem Tamandaré podia acompanhá-lo. Nem a nado, no pedal do velocípede ou a pé. Oromar era mais ouro, que todo o ouro do mar. O seu Nogueira era mais frondoso, sem falar da casca rija e da noz suculenta a se adocicar no trinado terno de um Pintassilgo Cannaris, uma espécie de uirapuru alemão. Uma descoberta que só o olhar ciclópico do titânico Dr. Polifemo percebia. Porque o auditório, como comum nestes discursos, ou fica fazendo barulho, ou fica ababacado, ou então adormecido, só acordando no aplauso. E o aplauso foi uma grande ovação. De pé, inclusive! Porque naquele tempo todo mundo tinha medo de demonstrar qualquer insatisfação com o regime militar. Mas, se a parte verbal foi destacada com muitas palmas e elogios, a recompensa financeira foi frustrante. As doações foram pouquíssimas. Do próprio Dr. Teodorico Polifemo, cuja oratória só era suplantada por sua própria sovinice, não saíra nada. Desculpara-se alegando ter esquecido a carteira. Na verdade, todo mundo que o conhecia bem, sabia que dele só saía fácil, louvores de galanteios e confetes, palavras soltas ao vento, em cascatas de elogios. Jamais um vintém. E assim a campanha, rendeu pouca arrecadação. Há quem diga, inclusive, que o Coronel Cannaris teve que pagar do próprio soldo sua passagem de retorno. Talvez com a escaramuça de Jeansenpater Faria, que pretendia fazer a “doação” de um Rolex falsificado como isca, seguisse uma cascata de doações. Isso, porém, ficou esquecido na história, ou na cascata dissipada enquanto fato. Infausto fato, pouco relatado e conhecido, perdido já no tempo, por necessário, mas que mudaria mais uma vez a história de Jeansenpater do Divinamor Faria. De ferrenho puxa-saco dos milicos, passaria a incensar os movimentos políticos contrários à ditadura militar. Iria ingressar na luta armada? Lá pras bandas do rio Araguaia? Jamais! Não era esse o seu feitio. Preferiria hibernar no lusco-fusco da treva vigente. Fingir-se de morto. Deixar apagar seu antigo discurso patriótico. Muda-lo aos poucos, introduzindo novos conceitos de liberdade e de cidadania. – Liberdade e cidadania! Ah! Que belo mote para um Jean Patifaria!
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