A Transa de Capitu

Machado de Assis (21/07/1839-29/09/1908)

Por conta do centenário da morte de Machado de Assis, resolvi voltar a algumas leituras antigas, perdidas já na memória de um tempo mais corrido e já distante.

 

Eis que acabei Dom Casmurro, romance de 1899, cujos personagens insinuam um “quatrilho”, só para usar o mote de “O Quatrilho”, filme brasileiro de 1994, dirigido por Fábio Barreto e baseado na obra de mesmo nome de José Clemente Pozenato, que foi indicado ao Oscar como Melhor Filme Estrangeiro em 1995, e foi bastante premiado mundo afora.

 

O filme, concebido a partir de uma trama real, passada em 1910, no interior do Rio Grande do Sul, habitado por imigrantes italianos, narra a saga de dois casais muito amigos que se associam num empreendimento agrícola, vivendo e convivendo sob o mesmo teto.

 

No filme, Glória Pires (Pierina) é casada com Bruno Campos (Massimo), enquanto Alexandre Paternost (Ângelo Gardone) é o marido de Patrícia Pillar (Teresa).

 

O tempo, a troca de olhares e sorrisos, os ruídos lascivos percebidos nas noites insones, tudo faz com que a esposa de um se interesse pelo marido da outra, e assim Patrícia Pillar foge com Bruno Campos, deixando descasados Glória Pires e Alexandre Paternost, que depois irão se reunir, mais por interesse e estabilidade financeira, que por atração irresistível do amor.

 

Em “O Quatrilho”, uma espécie de troca de par comum à dança de quadrilha, o desfecho da trilha, saída do desenfreio e da braguilha, finda saudável para todos, não restando nem o ódio, nem o rancor, com as famílias se correspondendo e trocando fotos, testemunhando as bênçãos de Deus no sucesso dos negócios e na prole de muitos irmãos, uns germanos, outros bilaterais parte a parte, todos restando aceitos pela preconceituosa sociedade, cheia de dogmas e danações.

“O Quatrilho” – Filme cujo enredo já se espelha no próprio cartaz. 

 

Não é o caso de Dom Casmurro, entremeado por “fumos de fidalgo”, contando a sua história triste de ex-seminarista em dúvidas, lamentações e indecisões, aprisionado em dogmas de promessas tolas e danações eternas; culpando tudo a Deus e eximindo a própria culpa, ensejando arrependimentos imprescritíveis dos que apodrecem e jamais amadurecem.

 

Dom Casmurro é o envelhecido Bentinho, o jovem perdido de paixões por Capitu, uma garota de olhos “de cigana oblíqua e dissimulada” que só tivera olhos para ele como o seu único amor, desde a tenra infância.

 

Capitu era o apelido de Capitolina, aquela que passaria para a estória como a adúltera que nunca traíra o marido, diferente de “O Quatrilho” em que houve uma permuta de cheiros e de sêmen, sem raivas nem ódios imperdoáveis.

 

Em Dom Casmurro; “A vida é uma ópera, uma grande ópera. O tenor e o barítono lutam pelo soprano, em presença do baixo e dos comprimirás, quando não são o soprano e o contralto que lutam pelo tenor, em presença do mesmo baixo e dos mesmos comprimirás.” O resto são coros, bailados e orquestração.

 

Ocorre que numa tragédia anunciada, Bentinho é um rapaz fraco e despersonalizado. Foram-lhe retiradas a vontade, a independência e a ousadia de realizar o seu sonho e buscar o seu destino.

Seu destino já lhe fora surrupiado ao nascer. A mãe, porque o parto lhe fora muito difícil, fizera uma promessa que só o filho a cumpriria. Assim, Bentinho teria que ser padre, exibir a tonsura e se eximir dos prazeres do sexo, abraçando o celibato, sob pena de sua mãe sofrer danação eterna por promessa não cumprida.

 

A história então se encomprida, se acumpliciando de dramas e de dúvidas, de promessas outras em muitos Padre-Nossos e Ave-Marias, crescentes e subseqüentes, acrescendo dívidas impagáveis em remorsos sucessivos junto a Deus, o Deus que dá tudo a todos, e nada impõe ou cobra.

Diversas versões de Capitu, alva ou morena, a critério do artista sem lhe conseguir  traçar o olhar de “cigana oblíqua e dissimulada”.

 

Ao jovem Bentinho,que conhecia as regras do escrever, sem suspeitar as do amar; tinha orgias de latim e era virgem de mulheres”, Deus dera o amor eterno de Capitu, justamente aquele amor único que somente ele o queria para si.

 

E Capitu, garota de pele “morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo” era por ele muito mais apaixonada, porque enfrentaria sem reclames a sua indecisão e fraqueza.

 

Mas, igual a outros quatrilhos de muitos dramas reais, Machado introduz dois novos personagens para desenvolver o drama com um toque surreal: Sancha que não era tão bela, e Ezequiel Escobar, indivíduo sem maiores virtudes de estética ou de inteligência. Sancha era a melhor amiga de Capitu desde a infância e Escobar se fizera também o maior amigo de Bentinho, quando juntos se encontraram no seminário, e ambos o deixaram por estrita ausência de vocação.

 

Assim, muito tempo depois em esperas de Capitu, libertos da promessa, Bentinho largou a batina virando bacharel, e o Escobar Ezequiel passou a comerciar com café, atividades de pouca fé e nada parecidas com rezas e missas, louvações de Te Deum, santos óleos ou água bentas.

 

E para que tudo acabasse bom e bem, Bentinho se casou com Capitu, e Escobar com a sua amiga Sancha, e juntos deveriam viver bem felizes, as famílias se visitando em muita amizade e confiança.

Em O Quatrilho, Patrícia Pillar e Bruno Campos são lascivos e insaciáveis, em gemidos de cios intermináveis, de muitos gozos e risos, enquanto Glória Pires e Alexandre Paternost farão sexo, carrancudamente, por missão e reprodução.

 

Em Dom Casmurro, Machado de Assis não explicita nada em termos de sexo e abrasamentos. Num tempo de casamentos com grandes proles e ausências de contraceptivos, Sancha e Escobar só conseguem ter uma filha a quem chamaram Capitolina, ou Capituzinha também, enquanto Bentinho e Capitu, só bem depois, tiveram um único filho a quem deram também o nome de Ezequiel, em retribuição por homenagem ao inseparável amigo Escobar. Há quem insinue na demora de engravidar de Capitu um contexto adulterino com Escobar, ensejando uma possível infertilidade de Bentinho.

 

Mas, de concreto, sabe-se que Capitu era tão amiga de Sancha que a tinha por irmã e, por conta disso Escobar a chamava de minha “cunhadinha”.

Em “Minha amada imortal” o genial e casmurro compositor Ludwig Van Beethoven é traçado como um infeliz angustiado, apaixonado pela esposa de seu irmão.

 

Em “A Vida como ela é”, Nelson Rodrigues descreve personagens canalhas que desejam e se fartam com as cunhadas.

 

O próprio Ludwig Van Beethoven, compositor tido como carrancudo e mal humorado, segundo a concepção do filme Beloved Immortal (Minha amada imortal), com Gary Oldman e Isabella Rossellini e dirigido por Bernard Rose, fora um homem sensível e angustiado porque se apaixonara imortalmente pela esposa de seu irmão.

 

Há quem diga, e o filme trata disso, que esta sua amada imortal está referida sem ser explicitada em sua carta testamento. Esta cunhada fora a ninfa inspiradora de sua nona sinfonia.

 

Quanto a Dom Casmurro, o pensamento adulterino surge apenas no ensimesmar de Bentinho diante do dilema de Otelo, “o mouro de Veneza”, enciumado por ver Desdêmona tão bela e tão pura, quanto por ele imerecidamente apaixonada, enquanto bruto e louco.

 

Ora, se em Shakespeare há um Iago fustigador de suspeitas e aleivosias, em Dom Casmurro não se desenovela qualquer desfecho neste sentido. Mesmo porque Machado de Assis coloca nos lábios do pretenso conquistador Escobar desejos e vontades que desfazem este tipo de suspeita. Escobar postula e almeja maior unidade entre as famílias com o casamento de sua filha Capituzinha com o menino Ezequiel, o filho de Bentinho e Capitu. Ou seja, Escobar não pode ser o pai de Ezequiel. Que pai fomentaria um casamento incestuoso?

 

Mas, se houve um cunhado canalha, fora o próprio Bentinho que nas linhas do capítulo CXVIII, houvera retido as mãos de Sancha. E relatando pela voz de Dom Casmurro o seu erro a todos nós, nos diz: “A mão dela apertou muito a minha, e demorou-se mais que de costume”… E um fluido particular “me correu todo o corpo desviou de mim a conclusão que deixo escrita. Senti ainda os dedos de Sancha entre os meus, apertando uns aos outros. Foi um instante de vertigem e de pecado”

Diferente de Bentinho que cobria até os braços de Capitu, Roger Vadim despia suas esposas, em filmes e livros, inclusive Jane Fonda, que no papel de Barbarella” (1968), tornando-se símbolo sexual, vindo depois a posar nua na Guerra do Vietnam encampando o “faça o amor, não faça a guerra”, grito famoso daquela época. No filme, Barbarella é a gurreira espacial que fazia sexo apertando a mão dos parceiros. Se Sancha fosse da estirpe de Barbarella teria feito sexo com Bentinho só porque lhe segurara enternecidamente a mão.

 

E este é o único pecado concebido e confessado, sobretudo porque em Dom Casmurro as cenas mais enternecidas de amor se dão em ambos os casos com Bentinho; a princípio com Capitu, por natural, e depois com Sancha, por proibido e pecaminoso, com os pares segurando as mãos uns aos outros e as pupilas a se mirarem embevecidas. Uma relação, só expressão de desejo, jamais uma preliminar sexual.

 

Sexual seria se fosse o caso de Barbarella, o personagem de histórias de quadrinhos adultos, lançado em 1962, pelo ilustrador e escritor francês Jean Claude Forest, e que depois foi levado às telas de cinema pelo diretor Roger Vadim (1928 – 2000) em 1968, quando resolveu expor ao mundo a beleza plástica de sua esposa Jane Fonda, que virou símbolo sexual daqueles tempos, e que ainda hoje permanece assim, já avó e sessentona.

 

E o filme de Barbarella só entrou aqui, porque na estória da heroína intergaláctica, Jane Fonda faz sexo em completa assepsia de contato mão a mão com qualquer parceiro, algo parecido ou mal estendido com Bentinho e Capitu, seu direito e seu amor, e depois com Sancha, um mal-feito de pecado e de horror.

Afinal, Bentinho não seria nenhum Roger Vadim, para casar várias vezes, e depois escrever sobre a sua intimidade com estas mulheres.

 

Se na vida real Vadim relatou suas vadeações com as belas atrizes Brigitte Bardot, Catherine Deneuve (com quem tem um filho: Christian) e Jane Fonda (com quem tem uma filha Vanessa) despindo-as em filmes e intimidades, Dom Casmurro no máximo descreve enciumado a beleza dos braços de sua amada Capitu.

 

Uma coisa estranha, aliás, porque se trata de uma exceção patrícia o não se enternecer com o cangote cheiroso, ou o colo harmonioso, ou ainda, e, sobretudo, pelas ancas de muitas cobiças e atiças, de deleites e de prazeres. Não! Bentinho não se deleitava com coxas, seios ou abundâncias de nádegas; desprezando os glúteos e todo o pernil, embevecia-se e enciumava-se com a paleta da mulher amada, preferindo-lhe os bíceps, os tríceps, os trapézios e os deltóides. Um prenúncio debilóide de loucura e ciúme que diferente do promíscuo Vadim, resolve vigiar os vestidos da mulher de modo a cobrir os braços bem torneados de Capitu.

 

Mas, voltando ao pecado, e destrinçando o crescente ciúme, a menos do relato de uma relação segredada de aplicação financeira com retornos bem polpudos, não se depreende uma falta de Escobar com Capitu, como o enlevo de mãos enternecidas de Sancha e Bentinho, fazendo uma espécie de amor de Barbarella.

Mas, independente de ciúmes e fatos que a isso justificasse, a desconfiança aparece quando, no avaliar casmurro de Bentinho, o menino Ezequiel se apresentava a si e a outros, com a forma e os gestos de Escobar. Seria este garoto um filho adulterino de Capitu e Escobar? Eis Iago aparecendo nos traços denunciados no todo inocente Ezequiel.

 

Eis agora também a suspeita indecente despertada, roendo por dentro, com Bentinho soturnamente se sentindo traído, em meio a tantos e quantos sorrisos.

 

E assim Bentinho vira Dom Casmurro relatando um recolhimento de tristezas e amarguras. O casamento depois será desfeito, a separação envilecer-lhe-á traços e lembranças, e o tempo corroendo a vida carregará todo mundo, morrendo Sancha, Escobar, a garota Capituzinha, depois Capitu e o próprio Ezequiel, nos anos alegres da adolescência, sobrando somente o casmurro Bentinho, aquele que nunca soubera o que queria.

 

E afinal, Capitu transou com Escobar? Não creio. Acho que se em Dom Casmurro o leitor quiser encontrar a transa explícita de um adultério, é melhor se deleitar com Ana Karênina ou ler Le Rouge et le Noir, afinal os personagens de Tolstoi e de Stendhal não têm a mordacidade e a ironia de um Quincas Borba ou de um Brás Cubas, ou do Conselheiro Ayres, ou de outros heróis machadianos, alguns sábios e cerebrais, outros tolos e descerebrados, todos de sensualidade contida e bem comportada.

 

Em tempos de agora, de um comportamento mais erótico e mais degradado, é mais engraçada a história do marido traído que nunca se vê convencido, nem mesmo com o relato televisivo do detetive particular contratado para flagrar o conúbio proibido.

 

– “Você fez o teste do barbante?” Desafia o galhudo não convencido. – “Passou você um barbante, entre os corpos abraçados, para ver se enganchava no caminho?”

 

Enganchos bem diferente dos de Otelo e Dom Casmurro, ambos se convencendo de uma infidelidade jamais acontecida.

 

Mas, independente do que se escreveu ou leu, o leitor quer, em lascas de machado, talhar Capitu em luxúrias, numa libidinagem suja que Machado não lhe deu. Querem-na, em filmes sonoros e a cores, se possível, em excessos de furor uterino, desfrutando e se desfolhando, em compartilhado de parceiros.

 

E afinal, em meio a vitupérios não encontrados, mas referidos, volta a pergunta: Capitu transou ou não com Escobar? Para Dom Casmurro, o que é importante, sim! Para Machado de Assis, não! Ou então, por melhor, que fique a critério da carícia ou da malícia do seu leitor.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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