A verdade não é para ser revelada?

Desde 2012, há pelo menos três anos, que o governo do Estado fala na criação da Comissão da Verdade estadual. Um dos objetivos seria subsidiar a Comissão Nacional da Verdade, instalada pela presidenta Dilma Rousseff em maio de 2009, mas essa já concluiu seu trabalho em dezembro do ano passado, revelando relatos de graves violações de direitos humanos praticados por agentes públicos no período de 1946 e 1988, com foco nos crimes cometidos durante a ditadura militar de 1964 a 1985.

Nesta terça-feira, finalmente o governo Jackson Barreto instala a Comissão Estadual da Verdade, que teve na sua preparação a coordenação do professor Antônio Bitencourt. Nomeada Comissão Estadual da Verdade “Jornalista Paulo Barbosa”, homenagem a um profissional da imprensa que sofreu as agruras do regime e depois se tornou estudioso do período, será presidida pelo ex-reitor da Universidade Federal de Sergipe, professor Josué Modesto dos Passos Subrinho, um nome acima de qualquer suspeita, pela seriedade e isenção como encara os desafios que lhes caem às mãos. Os demais integrantes são também professores e pesquisadores respeitados, Andréa Depieri Reginato, Gabriela Rebouças, Gilberto Francisco dos Santos – o Gilfrancisco, Helder Teixeira, José Afonso Nascimento e José Vieira da Cruz. A solenidade de instalação da comissão será às 10 horas, no Palácio de Veraneio.Se terão eles independência para revelar o que ainda permanece obscuro é o que se verá a partir de agora.

Aqui em Sergipe não há registro de assassinatos e desaparecidos políticos, mas houve perseguições, prisões ilegais e torturas. Os episódios mais recordados são aqueles acontecidos a partir de abril de 1964, inaugurados com a deposição e degredo do governador Seixas Dória. Mas o mais emblemático dos eventos patrocinados pelos militares é a Operação Cajueiro, em fevereiro de 1976.

Naquela véspera de Carnaval, uma força especial vinda da Bahia, sob as ordens do general linha-dura Adyr Fiúza de Castro, um veemente defensor da tortura e comandante da 6ª Região Militar, prendeu arbitrariamente 25 sergipanos, processando 18 deles, além de processar também o então deputado estadual Jackson Barreto. Essa força especial reunia elementos do temível DOI-CODI, do DOPS e da Polícia Federal e agiu em Aracaju sob as ordens do tenente-coronel Oscar Silva.

A acusação, que nem cabia a alguns deles, era de serem ligados ao proscrito Partido Comunista Brasileiro (PCB). A operação obedecia a uma ordem nacional de acabar com o Partidão, a exemplo das demais siglas clandestinas. No bojo desse recrudescimento da onda anticomunista, foram assassinados nas celas do DOI-CODI, em São Paulo, o jornalista Wladimir Herzog, em outubro de 1975, e o operário Manuel Fiel Filho, em janeiro de 1976.

Dentre os presos em Sergipe estavam os ex-vereadores Antônio Góis, Marcélio Bonfim e Rosalvo Alexandre, o aposentado da Petrobras Milton Coelho — que ficou cego devido à pressão da borracha que lhe vendava os olhos —, e o advogado Wellington Mangueira. Este, ainda debilitado por torturas e sevícias que sofrera ao lado da mulher, Laura Marques, em 1973.
Nos porões do quartel do 28° Batalhão de Caçadores, colocavam nos presos um capuz que pressionava fortemente os olhos com borracha, despiam-nos, submetiam-nos a exame médico e os trancavam numa cela incomunicável, onde realizavam os interrogatórios entremeados de torturas. “Quase todos teriam sofrido pancadas na cabeça, ‘telefones’, choques nas partes mais sensíveis do corpo, da língua aos testículos, bem como tentativas de afogamento, golpes na altura dos rins de ambos os lados do corpo, entre outras sevícias (alguns sergipanos teriam participado ativamente dessas operações, entre os quais o capitão Morais e até juízes de futebol ligados ao Exército: Siqueira, Barreto Góis, Cruz e Sargento Souza)”, descreveu o historiador Ibarê Dantas no livro A Tutela Militar em Sergipe – 1964/1984.

Pelo grau de violência física e psicológica, pelo visível e brutal desrespeito aos direitos humanos, esse é certamente o acontecimento que mais despertará interesse dos membros da comissão. Mas muito ainda desse passado nebuloso precisa vir à tona. Há a participação criminosa de pessoas que passaram incólume pelo julgamento da história, pelo menos até o presente. Há, por exemplo, um conhecido médico que atestava até que ponto os torturados suportariam as sevícias. Se ainda preservavam alguma resistência física, continuavam sendo torturados.

Depoimento de um torturado

O advogado Wellington Mangueira entende que a Comissão da Verdade deveria ter sido instalada desde a eleição para presidente de Fernando Henrique Cardoso, que também sofreu perseguições do regime ditatorial. “Ademais, como sociólogo e intelectual respeitado no mundo inteiro, deveria ter aproveitado o desmantelamento do SNI para disponibilizar todo o acervo de violência praticada pelo poder constituído, através dos seus agentes. Infelizmente, em nome da governabilidade, vários anos se passaram e nem mesmo o presidente Lula ousou colocar os militares no banco dos réus”.

Assim, prossegue Mangueira, “devemos cumprimentar a presidente Dilma, a imprensa, a OAB e os setores progressistas da Igreja, que não se cansaram de clamar, não por vingança, mas pela criminalização dos atos covardes praticados pelos algozes da ditadura, que não se cansavam de prender, torturar, aniquilar o indivíduo pela humilhação, matar, e pior do que tudo, levar muitos à loucura, a desconstituição do ser, transformando alguns em esquizofrênicos paranoicos, invertendo fatos e construindo, no imaginário da dor, situações inexistentes, acusações infundadas, transferências de responsabilidades. Esses foram os piores crimes cometidos pela ditadura militar, que até ofende a consciência humana e a história de resistência do nosso povo”.

No que diz respeito às violências praticadas em Sergipe, Wellington Mangueira coloca-se à disposição para contribuir com a verdade histórica. “É de se lamentar e lastimar que algumas pessoas possam querer desviar o foco das investigações, receosas de que seus comportamentos sejam levantados”.

E os ex-presos políticos, que passaram por tantos constrangimentos, terão interesse de que tudo seja realmente contado? “Acredito que quem continuou lutando pela causa da democracia e do socialismo nada tem a temer, pelo contrário, cada violência sofrida servirá para evidenciar a monstruosidade da ditadura e o respeito que se deve ter pelos que sofreram”, responde Wellington Mangueira.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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