No início da década de sessenta, eu estudava na Escola Paroquial Pio XII, na cidade de Groaíras no Ceará. Era a única escola da cidade onde se podia cursar o primário, que, naquela época, ia até a 5ª série. Sem dúvidas, foi ela a melhor escola em que já estudei o que existia de competência e boa vontade daquelas ilustres e saudosas mestras, professoras Zita, Júlia, Zuíla, Rosimar, Noélia, e Maria Moreira e do seu diretor, o também competente Monsenhor Raimundo Cleano Moreira, homem de personalidade forte, disciplinado e disciplinador, a ele eu devo muito, pois, se não fora por sua benevolência, eu nunca teria feito o primário e, consequentemente, como a maioria dos jovens daquela época, seria mais um analfabeto. Eu estudava de graça, pois a minha família não tinha como pagar, quer dizer, não era bem gratuitamente, pois eu trabalhava para compensar as mensalidades. Lembro nitidamente do dia em que a minha mãe arriscou-se a falar com ele, era bem no início do ano.
– Padre este menino é tão inteligente, eu vim aqui para pedir uma bolsa de estudo para ele. O senhor nos conhece e sabe que não podemos pagar, mas, ele pode trabalhar e compensar.
– Está bem, dona Lídia, eu vou ajudar o seu filho. Mas ele vai ter que me obedecer e trabalhar muito, preciso de gente, pois a lida do salão paroquial (onde funcionava o colégio) e da Igreja é muito grande.
E, virando-se para mim, asseverou:
– Tudo depende de você, viu, menino. Se me obedecer e trabalhar direitinho…
Eu só meneei a cabeça confirmando. Era o meu sonho.
Acordava cedinho para fazer a viagem do “Canto do Amaistempo”, este era o nome do lugarejo onde eu morava, até a cidade de Groaíras.
A aula começava as 08.00h em ponto, quem chegasse depois do toque da “sineta” não entrava, eram ordens do diretor e o Padre Cleano, como era conhecido, era muito rigoroso com tudo: horário, disciplina, higiene, cuidado com os livros etc. Saíamos às 12.00h, depois de formarmos em fila e uma das professoras, após uma revista para verificar se estavam todos em ordem, determinava qual seria o hino a ser cantado, o nacional: Ouviram do Ipiranga as margens plácidas / De um povo heróico o brado retumbante, / E o sol da Liberdade, em raios fúlgidos, / Brilhou no céu da Pátria nesse instante…
O da Bandeira: Salve lindo pendão da esperança! /Salve símbolo augusto da paz! / Tua nobre presença à lembrança /A grandeza da Pátria nos traz,
Ou da independência: Já podeis, da Pátria filhos / Ver contente a mãe gentil / Já raiou a liberdade no horizonte do Brasil.
Após a execução do hino e uma nova revista geral, era gritado o tão esperado: “fora de forma”. Aí, neste instante, acontecia uma debandada geral, esfomeados e sedentos meninos e meninas para todos os lados. O destino de um grande grupo era o café do seu Frederico e dona Maroca. Mas não era para tomar café, não. Fazíamos fila para tomar água, afinal estávamos desde às sete horas da manhã sem beber, sob o calor do sertão do Ceará.
Havia naquele estabelecimento um “potão”, conhecido entre nós como “jarra” ou “jarrão”, posto que, bem maior que um pote comum, sempre cheio de água; uma copeira com apenas um copo, ou melhor não era nem copo, na verdade tratava-se de um caneco (copo de alumínio com uma azelha), apenas um. O sedento ou a sedenta chegava, pegava aquele caneco e metia naquele potão, tirava a água bebia e depois, quando não tinha para quem passar, pendurava na copeira. Em seguida chegava outro e fazia a mesma coisa… Como já dito, quando a aula terminava formava uma fila e era “tibungo”, dentro do pote e glup, glup, glup, passava o caneco para o outro que fazia a mesma coisa até o final da fila.
Um dia, eu era o terceiro da fila, peguei o caneco da mão de uma colega de escola e automaticamente enfiei o braço no pote para colher a água, porém, percebi que aquela “jarra” estava quase vazia, o que recomendava cuidado para não “polmar” a água e ser obrigado a bebê-la com o “polme”, (polme, na verdade era e é ainda, a decantação das impurezas que iam se acumulando no fundo, visto pesarem mais que a água) ou não beber, o que convenhamos era quase impossível, só sabe disso quem já passou sede. Pois, bem, passei o caneco bem devagarzinho. Mas ele tocou em algo estranho e, eu, assustado, gritei: dona Maroca tem um cururu dentro da jarra!
Dona Maroca tirou a masca de fumo da boca, colocou num cantinho da copeira, arregaçou a manga comprida do vestido, sujo por mais de uma semana de uso, e enfiou o seu braço dentro do pote e surpreendentemente retirou de lá, uma alpercata (sandália de sola e pneu). E, como quem mostrava um troféu, bradou no ar aquela coisa estranha: minha “apragata!” Há mais de uma semana que procuro por ela… Esses meninos… Referia-se aos netos. Que, cá pra nós, eram terrivelmente bagunceiros.
Olhei para seus pés, sujos e rachados e percebi que ela estava apenas com um pé calçado, o outro em contato direto com o chão, e com uma aparência horrorosa de sujeira. A fila, discretamente se desfez e cada um foi matar a sua sede em outros potes, de suas casas, talvez. Quando olhei para trás não havia mais ninguém na fila. E, durante muito tempo, não bebemos daquela água.
Mas, como sabemos, o tempo passa, a sede, como sabemos é uma coisa insuportável, a gente normalmente esquece e tudo continua como, de fato, continuou do mesmo jeito: a mesma sede, o mesmo pote, os mesmos meninos, a mesma fila, a mesma água, o mesmo caneco, a mesma sujeira e o mesmo costume. Ah, que saudade!