Algemas da Discórdia

As prisões temporárias efetuadas em meio à “Operação Satiagraha” também nos proporcionam discutir outro tema de enorme repercussão social e relevância jurídica. É que, para operacionalização dessas prisões, as autoridades policiais se valeram de algemas, e os envolvidos foram conduzidos à prisão algemados, em cenas que foram exibidas pela televisão para todo o país.

 

Tais cenas produziram dois tipos de sentimentos: a) de um lado, setores da sociedade ficaram “de alma lavada”, uma espécie de conforto em perceber que “as coisas estão mesmo mudando” e que no Brasil os ricos também vão para a “cadeia”; b) outros setores da sociedade questionaram a própria necessidade do uso de algemas na realização de prisões de pessoas que não oferecem (no momento exato da sua consecução) ou não possuem meios de oferecer qualquer resistência à concretização do ato.

 

É inteiramente compreensível o primeiro sentimento. O Brasil é um país desigual, e tais desigualdades, de raízes históricas, refletem-se nos mais diversos campos. Uma delas é exatamente o âmbito de aplicabilidade concreta do direito penal. Pelas mais variadas razões, a força punitiva do Estado, na prática, recai predominantemente nas camadas mais pobres da população, o mesmo podendo se dizer no caso dos negros. Não há maior efetividade da força punitiva do Estado junto aos mais ricos. A discriminação aí é, sobretudo, na aplicação da lei. [1]

 

Assim, ver algum grande banqueiro (ou destacado político ou ainda conhecido investidor financeiro) algemado por determinação judicial – para fins de cumprimento de prisão, ainda que temporária – representa, no imaginário popular atiçado pela mídia, uma enorme satisfação, capaz de gerar nas camadas menos privilegiadas aquela sensação de que as coisas podem mesmo estar mudando.

 

Contudo, é preciso atentar para a serventia das algemas como meio de operacionalização de prisões e de tratamento a ser dado aos presos no regime de execução da pena ou cumprimento de prisão provisória.

 

Com efeito, a legislação brasileira não regulamenta explicitamente a utilização de algemas como instrumentos de realização de prisões. O Código de Processo Penal apenas dispõe, em seu Art. 284, no capítulo em que cuida de prisão e liberdade provisória, que “Não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso”.[2]

 

Sem dúvida alguma, as algemas são meios eficazes para prevenir resistências físicas à prisão, bem ainda tentativas de fuga ou qualquer outro abalo ao seu cumprimento, eis que dificultam sensivelmente a mobilidade corporal do envolvido.[3]

 

Daí que, em dadas situações, a utilização de algemas torna-se imperiosa, ao menos até ser estabelecida a tranqüilidade e a segurança necessária, tanto dos agentes policiais como da população.

 

Todavia, há situações em que o uso de algemas é claramente desnecessário, representando indevido manejo da força estatal. Refiro-me àqueles casos em que, à toda evidência, a reação à prisão é difícil, para não dizer impossível.

 

Há um exemplo clássico: a prisão do ex-Senador pelo Estado do Pará, Jader Barbalho. Foi preso e algemado ao descer as escadas do avião (em 2001 ou 2002, salvo engano). Convenhamos que ali, naquela situação, não havia como ser oferecida qualquer resistência efetiva ou como o ex-Senador de algum modo conseguir fugir.

 

Outros exemplos podem ser extraídos do cotidiano, mas é verdade que geram menos protestos, porquanto aqui as algemas são usadas em anônimos e pessoas pertencentes a classes sociais mais baixas, que possuem – infelizmente – menor “poder de pressão” e menor capacidade de reação contra abusos de poder.

 

No caso da utilização desnecessária de algemas para a concretização de prisões provisórias, o abuso do poder estatal se torna ainda mais evidente porque as algemas se tornam, no imaginário coletivo, sinônimo de culpabilidade. O algemado e preso, para o público, já é um condenado, ainda que o processo esteja em análise pelo Poder Judiciário. A presunção constitucional em matéria penal, como sabemos, é de não-culpabilidade. Somente após a decisão judicial condenatória tornar-se definitiva é que alguém pode ser considerado culpado.[4] Uma vez algemado, porém, difícil será a recuperação do prestígio social em caso de absolvição.

 

Esse tema (uso de algemas) está em pauta no Supremo Tribunal Federal. A previsão é de que amanhã (quinta-feira, 06/08/08), seja iniciado o julgamento do Habeas Corpus nº 91.952 (Relator Ministro Marco Aurélio). O caso é de um cidadão que foi obrigado a permanecer algemado durante todo o seu julgamento pelo Tribunal do Júri. A defesa pede, no habeas corpus, a nulidade do julgamento, entre outras razões porque, aos olhos dos jurados, o processado “aparentava ser dotado de, diga-se, personalidade perigosa, o que não correspondia à realidade”. Sustenta ainda que “não havia a mínima razão plausível para que o paciente permanecesse algemado durante o julgamento pelo Tribunal do Júri” e que, em conseqüência, houve “um nítido desequilíbrio na igualdade que deve haver entre Acusação e Defesa”.

 

Do resultado desse julgamento pode sair um importante precedente da Suprema Corte quanto ao disciplinamento da utilização de algemas.

 

 

Vida Pregressa e Registro de Candidatura


Está na pauta da sessão plenária da tarde de hoje (quarta-feira, 05/08/08), o julgamento, pelo STF, do pedido de medida cautelar na ADPF (Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental) nº 144, proposta pela Associação dos Magistrados do Brasil, na qual sustenta, entre outros pontos, a auto-aplicabilidade da norma do parágrafo 9º do Art. 14 da Constituição Federal (
§ 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta).


Em outras palavras, o que a AMB sustenta é que a possibilidade de a Justiça Eleitoral negar o registro de candidatura a candidatos que tenham uma vida pregressa “maculada” independe de regulamentação por meio de lei complementar. Daí porque seria inconstitucional o dispositivo da Lei Complementar nº 64/90, que exige o trânsito em julgado de sentença penal condenatória para a configuração dessa específica hipótese de inelegibilidade (“
Art. 1º São inelegíveis: I – para qualquer cargo:(…) e) os que forem condenados criminalmente, com sentença transitada em julgado, pela prática de crime contra a economia popular, a fé pública, a administração pública, o patrimônio público, o mercado financeiro, pelo tráfico de entorpecentes e por crimes eleitorais, pelo prazo de 3 (três) anos, após o cumprimento da pena;”).


O TSE, em duas oportunidades, afastou a tese. O tema já foi objeto de comentário aqui neste mesmo espaço.[5] A minha impressão é de que, nesse momento, o STF manterá o entendimento do TSE.



[1] Essa circunstância não passou despercebida pela Constituição Federal, tanto que prevê, como objetivo fundamental da República, a redução das desigualdades sociais e regionais (Art. 3º, inciso III) e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (Art. 3º, inciso IV).

[2] A referência a algemas somente vai aparecer no âmbito da administração do sistema prisional: o Art. 199 da “Lei de Execuções Penais” (Lei nº 7.210/84) prevê que “o emprego de algemas será disciplinado por decreto federal”, dando a entender exatamente da necessidade de regulamentação do uso de algemas para evitar abuso de poder sem prejuízo da sua devida utilização como forma de garantia do cumprimento de prisões.

[3] Tome-se como exemplo o transporte de presos para prestar depoimento em juízo ou perante autoridade policial. Durante o transporte, o eventual não uso das algemas pode servir de meio facilitador de tentativa de fuga, ou ainda estimular o preso a tentar se apoderar da arma de algum agente policial e concretizar algum ato de violência ou tomar alguma pessoa como refém. Por mais estranho e até surpreendente que possa parecer, há vários casos de tentativas de prisão em que, não algemado, o destinatário da ordem de prisão consegue (valendo-se de inexperiência/nervosismo do agente policial ou outros fatores) dela se desvencilhar e tomar a arma do agente policial.

[4] Art. 5º, inciso LVII da CF: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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