AMIGOS DE INFÂNCIA

                                                                       
Hoje carrego comigo um componente saudosista dos belos e ditosos tempos de minha infância querida.

 

Sinto falta da família, dos amigos, das brincadeiras, das caçadas, dos banhos de rio e das pescarias.

 

Sinto saudade dos projetos que fazia para o futuro, sinto muito, muito, a falta dos sonhos bons que amanheciam naqueles dias já tão distantes.

 

Foram-se: a família, os amigos, as caçadas, e as pescarias. Ficaram os sonhos.

Os amigos seguiram cada qual para um lado diferente; a minha família também, partiu em retirada das secas cruéis e constantes que assolaram a nossa terra.

 

Todos, assim como eu seguiram por destinos sequer por vezes imaginados. Fomos empurrados para lá e para cá, num verdadeiro bailado louco de imprevisões.

 

Hoje, quando volvo àquela terra querida não encontro mais meus amigos, meus parentes, meus conhecidos. Encontro, aqui e acolá, alguns descendentes deles: filhos ou netos, todos grandões, homens feitos.

 

Às vezes ouso indagar, de quem tu eis filho menino? Eu sou filho de fulano. Não conheci. E quem era o pai dele? O meu avô? Sim o seu avô. Era cicrano. Ah, este foi meu amigo de infância. Como ele está? Bem, há tantos anos ele teve uma doença… Ah, entendi, deixa pra lá.

 

De todos esses amigos um apenas um grande e querido amigo, ficou a esperar-me, no mesmo lugar de sempre: alquebrado, tristonho, solitário. Mas, ele sempre está lá quando volto ao cantinho amado dos meus passos juvenis.

 

Feliz em ver-me, sempre me recebe de braços abertos, e, emocionados choramos de alegria pelo feliz evento de nosso reencontro.

 

As minhas lágrimas de saudades se juntam às suas, numa imaginária enxurrada dos invernos que se foram.  Mas, ele sempre está lá.

 

Como eu, ele também está mais velho, mais cansado, menos barulhento. Não tem mais aquele vigor de outrora.

 

O que para mim é natural, pois o tempo nos tira esta pressa, nos empresta em contrapartida a calma. Faz-nos mais lentos e mais mansos, porém, o tempo que para mim é medido em dias meses e ano, para ele o correto seria contarmos em décadas e séculos.

 

O que está acontecendo comigo é absolutamente natural, estou dentro da normalidade da existência. Contudo, jamais deveria significar o mesmo com este meu amigo.

 

Todavia, com o argumento de que ele devia servir à minha espécie ele foi aprisionado, alargado e seccionado. Garrotearam a sua artéria principal, além de alargarem-na aqui e ali. Por isso ele está muito anêmico e fraco. Alegam que é para ele se tornar perene.  Perene? Quanta ironia! Perene quer dizer permanente quer dizer inteiro vivo e para sempre com toda a sua potencialidade. Permanente sem o vigor de outrora? Perene, mas sem vida? De que adianta?

 

É claro que ele gostaria de ter a autonomia de sozinho traçar seu próprio destino. É de sua natureza correr solitário, procurar se estirar na busca de sua estrada, ir em frente por si mesmo, fazer seus “arrudeios”, seguir adiante, pousar aqui e ali, provar da terra por onde passa e seguir o seu destino. Sempre em frente.

 

Para este meu amigo não é bom que outros delimitem seu caminho. Ou lhe empatem seu o curso. O ideal é que ele vá sozinho que siga o seu destino sem nenhum embaraço.

 

Este meu amigo é o meu Rio. Onde nadei e pesquei. Ele era meu brinquedo preferido. Mas, era também a nossa fonte e o nosso celeiro.

 

Dele tirávamos a água, o peixe e o fruto. Caudaloso na estação das chuvas, ou seco no estio, ele sempre era acolhedor, bondoso e útil.

 

Cumpria bem o seu papel, o meu querido Groaíras. Dava-nos alegria, matava a nossa sede e saciava a nossa fome. Era completo.

 

No meu rio, quando chovia em sua nascente, logo corria de boca em boca: lá vem a cabeçada! Lá vem a cabeçada!

 

Esta era a senha para todos cuidarem de desocupar os espaços que breve seriam alagados; retiravam-se às pressas animais, plantações, cercas e o que mais pudesse salvar, pois o que ficava ele levava na enxurrada.

 

Era também o sinal para a meninada da redondeza, pois sabíamos que ele estava chegando, já sentíamos o seu cheiro e escutávamos o seu barulho.

 

Descia alegre e altaneiro o meu querido rio Groaíras.

 

Na sua primeira passagem era atrevido, ruidoso e valente. Arrastava tudo o que encontrava pela frente: plantações, moitas, cercas, ramadas, paus garranchos e folhas. Levava tudo. Formava grandes balseiros, e arrastava com violência, como se impondo. Como que avisando sou o maior e mais forte “arredem” senão eu levo  vocês também.

 

Parece que fazia de propósito, se mostrando à nossa perplexidade. Faxinava tudo, como se diz, limpava a área para a nossa brincadeira de crianças livres.

Quando aquela violência passava, quando a enxurrada barrenta, espumante e agitada descia o meu rio se acalmava. De violento e aterrorizador, se transformava. Agora, era apenas uma massa liquida calma, mansa e aconchegante.

Tranquilo no seu leito ele fluía magistralmente se mostrando aos nossos olhos como a dizer: pronto, cambada, cheguei, limpei a área, podem brincar a vontade.

 

Ah! Aí era o momento da algazarra, a molecada iniciava o reboliço: era menino saltando, pulando, dando cambalhota, nadando… Não. Nunca existiu e nem existe nada melhor do que os banhos e as pescarias nos nosso rios da infância.

 

E ele, ao que parecia muito feliz e realizado, ficava ali vários dias, para o nosso deleite. Tudo indicava que estava muito bem com toda aquela balburdia, com toda aquela algazarra, com toda aquela “tribuzina”. Dali descia calmo e solene, parecia sorrir de tanta felicidade que emprestava a petizada.

 

Como todo rio, ele também se dirigia ao mar. No entanto, não ia direto e nem sozinho, poucos quilômetros abaixo pegava uma carona no grande Acarau e, juntos, desaguavam no mar infinito.

 

Eu também, querido amigo, tive que pegar carona no destino e seguir outros caminhos e, de passagem, desagüei em vários mares, por fim, vim dar com a minha existência, próximo a um rio, um seu irmão, o Sergipe. E, da minha janela contemplo a sua sepultura, não no mar, destino natural desta raça de sangue fluvial, mas na degradação, na sujeira, no descaso dos meus semelhantes.

 

Sinto que ele se incomoda, às vezes até se revolta, estrebucha raivoso, tenta remarcar e retomar o seu território, transborda se espalhando, devolvendo aos agressores seus próprios descartes. Invade áreas que antes lhe pertenciam, bate forte nas grades de sua prisão, reclama espaço antes só seu.  Mas, contudo, minguam-lhe as forças, as barreiras são mais fortes e ele ferido e resignado, segue em seu leito de dor até o mar onde lava a sua água putrefata no sal de sua majestade o oceano.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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