Amor que mata – Araripe Coutinho

 

 

 

Amor mata aos poucos. Devagar. Vai nos fazendo, desde o nascimento, um ser dependente. Depois vamos crescendo, sangrando por todos os lados, e se exigentes, sofremos mais, porque o amor segundo Pessoa “não só quem vos odeia vos oprime e vos mata, quem vos ama, não menos vos oprime, não menos vos mata.”

O amor é condescendente. Espera. Tem paciência. Mas o amor também destrói aos poucos. Corrobora. Faz do outro uma presa, uma vespa em volta da luz. Mas o amor não mata, de fato. Ele nos ajuda a viver. O homem que atira contra a mulher, é um covarde, um indecente. Porque quem ama mesmo não mata. O amor mata na dimensão do amor e da esperança. O ato de tirar a vida física do outro não explica a guerrilha que travamos dentro de nós. Se somos condescendentes com pessoas que matam as amantes, atiram nos filhos e achamos isso normal, apodrecemos como sociedade e como seres humanos.

O amor nos acorda para a eternidade e se ficamos sem gozar com o parceiro, é porque em algum momento nos desamamos, nos deixamos ferir pelo desamor. Faltam preliminares, aquela palavra mágica, aquele toque, aquele silêncio, aquele deitar-se ao lado. Porque de repente fomos ficando sozinhos com a casa cheia, fomos ficando tristes no meio do circo, fomos ficando calados na hora do show. Porque o amor, esse da vida, também mata, aos poucos. Saber que o marido tem uma amante, que ele não almoça com os filhos, não mais viaja, não mais quer discutir um assunto, uma novela, um filme, uma notícia. E os filhos foram ficando longe, indo pra longe, desesperançados, sem amor. Porque amor é uma dor que não se resolve e vamos perdendo a paciência, não escolhemos mais a carne no açougue, nem o itinerário das férias, nem os filmes que vamos assistir neste final de semana. Fomos ficando escuros, rotos, esquecidos.

Porque o amor mata para sobreviver. Mas só ele salva. Só ele nos eleva além de nós mesmos. “Ainda que eu falasse a língua dos homens, sem amor eu nada seria”. “O amor é dor que dói e não se sente, é um contentamento descontente. É dor que desatina sem doer.”

No dizer de Renato Russo e Camões, o amor soa como aquilo que ensandece, que nos faz apáticos, quase bobos diante do ser amado. O amor mata. E se morte e amor têm esta força quase surreal, o amor suplanta a ferida e põe no tempo uma poesia de vida.

Viver é impossível. Tem que se repetir com Cecília Meireles “a vida só é possível, reinventada”.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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