Ano novo, velhos hábitos

Existem diversas superstições acerca da virada do ano. Tem gente que usa branco, tem gente que associa cores das roupas aos desejos e expectativas, tem gente que come lentilha, uva, romã, tem gente que pula 7 ondas, que joga alfazema e rosas brancas no mar. No Brasil, o que não nos faltam são crenças e ritos de passagem marcantes. Porém, o que muito já sabe, mas que se finge não saber, é que a maioria dessas crenças é oriunda das religiões afro-brasileiras. Todo mundo ama falar do mar de Yemanjá e saudá-la como Rainha e figura mais importante do sincretismo existente entre as religiões cristãs e afro. Todo mundo é batizado na Igreja, mas tem uma seiva de alfazema no banheiro de casa, que é utilizada para atrair bons fluidos, boas energias e prosperidade, além de associar o banho de mar à limpeza espiritual, principalmente na passagem do ano.

Parte dessas crenças vem da Umbanda e Candomblé, em que na década de 70, rituais eram vistos na última noite do ano nas praias do litoral do Rio de Janeiro, e os membros dessas religiões vestiam branco, cor que é remetida à herança do período da escravidão. Na época dos grandes engenhos e plantações, as roupas utilizadas pelas pessoas escravizadas eram as mesmas utilizadas em seus rituais religiosos, ou seja, os turbantes brancos, as saias rodadas brancas, as calças, mesmas vestes nos trabalhos da Casa Grande. Isso foi se adequando e sendo ressignificado ao longo do tempo, mas a cor branca também tem essa relação de acessibilidade ao que era possível ser feito na época, visto que todos os rituais tiveram que sofrer adaptações e resistir às proibições e desumanidades feitas pela sociedade escravocrata.

Os sete pedidos e sete ondas relacionam-se também à Umbanda, religião que possui 7 linhas de trabalho ligadas às divindades e entidades cultuadas, e para cada uva comida ou onda pulada, há o pedido a cada uma dessas sete linhas. Ou seja, seria mais fácil se o sincretismo atuasse de maneira agregadora, porém, a nossa herança violenta não permite que ele seja ressignificado e repensado na sociedade como uma incorporação de hábitos culturais. A mesma pessoa que veste branco e faz pedidos à beira-mar, é a mesma que faz o sinal da cruz ao passar por uma encruzilhada com os ebós para Exu, ou que associa as religiões afro-brasileiras ao negativo, ruim, mau.

Quando eu falo que não conheço o santo católico A ou B, ou que não me interesso por determinadas orações católicas, ou quando afirmo que não irei batizar meu filho no catolicismo, sou alvo de muitas críticas, olhares, inclusive já ouvi que estava reproduzindo o preconceito que tanto me esforço para combater em relação à minha religião. A grande diferença nisso tudo é que a origem do batismo católico é a imposição, a destruição de inúmeras culturas, a ameaça à cidadania, e isso não é um exagero meu, isso é História. A diferença é que não expor apoio às religiões afro, quando se utilizam de tantos dos seus rituais, é ser conivente com a perpetuação da violência a essas religiões. Por que esses simpatizantes têm vergonha em dizer que já procurou uma cartomante, uma mãe de santo, que já tomou uma limpeza no Candomblé, que já fez ebó, mas não sentem vergonha em falar que são batizados numa Igreja cujo alicerce foi feito com escravidão, violência e estupro?

A crítica pela crítica, para mim, não constrói. A culpa não é do catolicismo, protestantismo, espiritismo etc. As religiões não devem ser culpadas pela conduta de seus religiosos, mas é necessário refletir em como, realmente, respeitar os caminhos e escolhas que não são suas.  O Candomblé e a Umbanda não são religiões fechadas e exclusivas a seus membros, mas, é necessário que essa rede de curiosos que acredita apoiar e ter afinidades com a religião, mesmo sem adentrar, de fato, em sua ritualística, assuma e saia em defesa nos momentos em que o silêncio ecoa diante de uma agressão a essas manifestações religiosas.

Lembrem-se que o silêncio é uma arma poderosa para o bem e para o mal. Silenciar diante de uma situação de injustiça, de violência, de descaso, é estar de acordo com o opressor. O medo da fala é o mesmo medo que mata todos os dias os sonhos, os corpos, é o medo que oprime, que cala e que destrói a coletividade, a diversidade em nossas vidas. Pensem nisso, construam novos hábitos a cada ano, e incorporem o sincretismo de maneira real, justa e colaborativa. O silêncio é ouro, mas é a atitude que necessita reluzir.

Axé!

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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