ANTONIO, AUGUSTO e MORENO – Parte 2

ANTÔNIO, AUGUSTO e MORENO: vidas que se entrelaçam, personalidades ímpares que permeiam com luz própria e fulgurante a História da nossa Medicina, no Século XX. Heróis na arte de curar, heróis na arte de confortar, heróis na arte de servir ao próximo, com predestinação, humanismo …vitórias e derrotas, erros e acertos. Suas trajetórias na Medicina e no universo cultural se confundem na ação e no saber,  na inteligência e no altruísmo, do “ser” superando o “ter”, três vidas vividas para o bem, para os mais necessitados, doando conquistas para a sociedade. Anteriormente apresentamos um ensaio sobre Antônio Garcia. Na sequência, falo de Augusto Leite.

 

   AUGUSTO

 

Em 1986, Sergipe se preparava  para as comemorações do Centenário de Nascimento do eminente cirurgião. A Sociedade Médica de

Augusto Leite

Sergipe lança, naquela oportunidade, uma edição especial de seu jornal em comemoração à data. Na condição de responsável pelo boletim, entrevistei pessoas e busquei fontes. Produzi então uma acalentada  edição especial de doze páginas, com depoimentos de médicos, alguns inéditos, entre eles o de Gileno Lima, fundador e presidente de honra da Academia Sergipana de Medicina, revelando um acontecimento memorável do qual foi protagonista, envolvendo o Dr. Augusto Leite,  no ano de 1962, com o título “A volta do velho cirurgião” . A emoção foi traduzida no editorial que escrevi: “Que fascínio poderia este homem exercer sobre toda uma geração? Que fascínio poderia exercer este médico sobre seus pacientes? Onde conseguia arregimentar forças para desempenhar as suas pioneiras atividades? Mergulhei no passado para tentar responder a essas indagações que muito me intrigavam! E dele saí com a certeza de poder resumir tudo numa única frase: “Ação e amor ao trabalho”.

Dos três, Augusto foi o primeiro a receber o grau de doutor em Medicina, no início de 1909, no Rio de Janeiro, (ano que Moreno nascia, na cidade de Laranjeiras), após defender a tese “Da contraindicação renal ao emprego do salicilato de sódio”, um século depois da fundação, por Dom João VI, do Colégio Médico-Cirúrgico da Bahia, instituição que  iniciou o ensino médico no Brasil. Graças ao extraordinário acervo do nosso confrade Petrônio Gomes, a tese do Dr. Augusto Leite está sendo adicionada hoje ao acervo da nossa Biblioteca Pública.

Em 1913, Augusto Leite é nomeado pelo então presidente da Associação Aracajuana de Beneficência, mantenedora do Hospital, o desembargador Simeão Sobral, para compor o seu corpo clínico. Até então, Augusto Leite operava em residências e fazia partos, às vezes à luz de querosene.

Em 9 de novembro de 1914, numa data que entrou para a história da medicina sergipana, o Dr. Augusto expôs à luz do dia a cavidade abdominal de uma paciente, para dela retirar um fibromioma uterino. Até então, nunca, ninguém, em Sergipe, abrira um ventre em operação cirúrgica. Estava, finalmente, inaugurado o ciclo da chamada “grande cirurgia” no Estado.

No entanto, em 1918, um fato abalou a vida de Augusto Leite. Em 12 de abril, o falecimento do jovem Ewerton Coelho, agitou o pequeno estado. Nas palavras de Acrísio Torres, uma “inominável conjuração que suscita rumoroso caso clínico”, envolvendo um dos mais renomados médicos sergipanos daquela época: Helvécio de Andrade. Detalhes desse rumoroso caso fogem do escopo da minha manifestação. A professora Cristina Valença, em “Medicina, Educação e História – a trajetória de Helvécio de Andrade” descreve o episódio detalhadamente e ao final conclui que “na realidade, os fatos estão envolvidos por considerações subjetivas e descerram perspectivas da intelecção do real. Por vezes, podem levar a conclusões errôneas de um episódio ou fato histórico. Assim, o objetivo não seria determinar o culpado, mas evidenciar que o campo médico sergipano não estava alheio a conflitos e lutas pelo poder”.

Apesar de contar com o apoio da quase totalidade dos seus pares médicos da época, que lhe manifestaram total solidariedade, Augusto sentiu o peso do episódio. Segue depois para a América do Norte, atendendo convite do professor americano Albee e na renomada Clínica Mayo,  para aprimorar seus conhecimentos nas novas técnicas cirúrgicas que a ciência médica empreendia, após a descoberta da anestesia. Ficou dois anos por lá. Em seguida, Paris, onde termina a sua especialização.

No início de 1923, já em terras sergipanas, Augusto reivindica ao presidente do estado, Maurício Graccho Cardoso, a construção de um novo hospital na cidade, onde pudesse exercer com segurança a moderna cirurgia, com um meio cirúrgico adequado ao desenvolvimento e prática de novas intervenções. Em novembro, era batida a pedra fundamental do futuro Hospital de Cirurgia.

Finalmente, em 1926, no areal da Thebaidinha, é inaugurado o hospital, dando nome ao bairro onde nasceu, hoje densamente povoado. Se no Brasil as leis fossem cumpridas, o bairro que abriga o hospital deveria ser chamado de Bairro Dr. Augusto Cezar Leite, conforme Lei Municipal 581, de 8 de maio de 1978, assinada pelo engenheiro João Alves Filho, então prefeito de Aracaju.

A administração do hospital foi entregue pelo governo, sob as bênçãos do bispo diocesano Dom José Thomaz Gomes da Silva, às Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição, entre elas as irmãs Úrsula, Bernardina, Berarda, Theodata e Clara, todas alemãs.

Cinco meses após a inauguração do Cirurgia, que funcionava a pleno vapor nas suas três salas cirúrgicas, Augusto Leite retira-se do hospital Santa Isabel, após realizar em treze anos quase 500 grandes cirurgias. As motivações que determinaram a saída do cirurgião nunca foram devidamente explicadas. O Conselho de Administração da Associação Aracajuana de Beneficência, mantenedora do  hospital, presidido pelo Almirante Aminthas Jorge, havia decidido suprimir os serviços de alta cirurgia e essa decisão foi um golpe nas pretensões de Augusto Leite em continuar operando no nosocômio. A dor sentida por esse fato foi tão grande, que ele só voltou ao Santa Isabel no dia em que esse hospital completou o seu primeiro centenário de existência, em 1962, numa ação bem articulada do Dr. Gileno Lima, então diretor. Haviam passados 36 anos. Estava sendo cicatrizada o antigo e grave ferimento.

No Hospital de Cirurgia, Augusto Leite continuou sua vida sempre vitoriosa, com novas conquistas a cada ano, apesar de ter passado sempre por enormes dificuldades e crises. Uma delas, pouco conhecida, houve, naquela época, quem o quisesse tomar para o governo federal, com o novo nome de  Centro Hospitalar Getúlio Vargas. Isso não vingou, todavia. O hospital cresceu e prosperou, tornou-se um hospital geral, também de clínica médica não só cirúrgica, onde as várias especialidades foram sendo exercitadas. Surgiram o Hospital  Infantil e um grande pavilhão com três pisos para o Centro de Puericultura e a Escola de Auxiliares de Enfermagem.

Em 1943, a construção de um novo pavilhão abrigou a Maternidade Francino Melo. Nessa mesma década, planejou Dr. Augusto a construção da Casa Maternal, que depois de pronta recebeu o nome de Amélia Leite. Nela seriam abrigadas as mães adolescentes e mães solteiras, mães sem posse e mães envergonhadas, filhos desemparados e filhos sem pais, funcionando em regime de internato e externato. Veio a Escola Raio de Sol, para pequenos de dois e três anos. O que Dr. Augusto Leite fez pela criança sergipana só se compara à sua saga de cirurgião. Enquanto vivo esteve, a Casa Maternal foi a menina dos olhos de Dr. Augusto, nas palavras de Juliano Simões que, na entronização  da herma em homenagem ao cirurgião, colocada no pátio do Hospital de Cirurgia, disse: “A rijeza do bronze expressa para sempre a firmeza com que Augusto Leite, pelo seu saber, tem podido ser útil à humanidade sofredora” .

Em 1953, com Moreno à frente, ideólogo da ação, instala a Sociedade Civil Faculdade de Medicina,

entidade mantenedora da futura escola médica, com Augusto no seu comando. Ainda não era o momento certo. Futuro prédio e quadro de professores chegaram a ser definidos. Mas faltava a ação e a determinação, que só vieram anos depois, em 1959, quando o médico Benjamin Carvalho assumiu a Sociedade Mantenedora e aliou-se à firme decisão do governador Luiz Garcia em fundar a faculdade. O governador, para não ter dúvidas, nomeou o seu irmão Antonio, para comandar a superpoderosa secretaria recém criada de Educação, Saúde e Cultura. E Garcia não perdeu a oportunidade.

Quando o Dr. Augusto Leite completou 50 anos de sua formatura, em 18 de janeiro de 1959, Sergipe inteiro engalanou-se para homenageá-lo. Realizou-se uma sessão solene no Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, com diversos oradores se revezando nas homenagens. Augusto extrapolou suas atividades médicas. Foi  diretor da Escola de Aprendizes, de 1910 a 1916, quando passou a lecionar  História Natural e de Higiene, do antigo Atheneu Sergipense. A partir de 1918 passou a ensinar História Natural no Seminário Diocesano. Foram seus alunos, por aquele tempo, Dom Mário de Miranda Vilas Boas, Monsenhor Carlos Costa, Monsenhor Dr. Alberto Bragança de Azevedo, Monsenhor Domingos Fonseca, desembargador Humberto Sobral e o professor e Dr. José Olino, estes dois últimos quando seminaristas. Participou ainda da assembleia de fundação da Faculdade de Direito em 1950, sendo escolhido o primeiro professor da disciplina de Medicina Legal, depois substituído por Garcia Moreno.

Em certa fase de sua vida, tomou parte em atividades políticas, tendo chegado a Senador da República por Sergipe, de 1934 a 1937, renunciando ao mandato com a decretação do Estado Novo por Getúlio Vargas.

Na Assembleia Constituinte Nacional, defendeu teses, àquela época, que hoje estão perfeitamente atualizadas e sendo acolhidas e executadas.

Outro 50 anos,  o do  Jubileu de Ouro da primeira laparotomia feita em terras de Sergipe, foi celebrado de uma forma incomum, inusitada.  Foi no Hospital Santa Isabel que aquela operação fora executada em 9 de novembro de 1914. O nosocômio se engalana para comemorar o quinquagésimo aniversário de sua realização, em 1964. Augusto repete, então com 78 anos de idade, a mesmo tipo de operação que fizera há 50 anos. Depois, entregou ao Dr. Gileno Lima, diretor do Hospital fazendo um especial presente de valor, assim histórico quanto estimativo, para lá ser guardado, como recordação sua, o bisturi de ouro que os colegas lhe ofereceram no dia do seu jubileu áureo profissional. Coube ao Dr. Juliano Simões ser o intérprete das homenagens prestadas pelo corpo clínico e administrativo do hospital naquela oportunidade. O diretor do hospital Gileno Lima, certa vez me confidenciou: “Confesso-lhe, honesta e humildemente, que de todas as realizações de nossa gestão à frente do hospital nenhuma, mas nenhuma mesmo sobrepujou, pelo seu significado afetivo e alto teor de justiça, a volta do velho cirurgião, do filho pródigo ao centenário Hospital”.

Moreno certa vez, disse: “Augusto é um tema rico, fértil e fácil”.  Falar sobre a sua vida é assunto quase inesgotável, tão cheia de serviços prestados à humanidade, tão plena de benefícios ao próximo, tão rica de benesses distribuídas com a fartura de sua prodigalidade, engrandecidas pela bondade de seu coração e grandeza de sua alma como pessoa humana, como profissional consciente, como médico humanitário, como cidadão presente, como chefe de família exemplar.

Certa vez, disse Jacinto de Figueiredo, apropriadamente, em um soneto em homenagem a Augusto: “Não louvo o homem, louvo o altruísta, – bondade, vocação, desprendimento”. Cuja mais bela arma de conquista em prol do bem comum – é o sentimento”.

João Gilvan Rocha, que ocupou assento neste sodalício na mesma cadeira primeiramente ocupada por Augusto, disse certo dia sobre o seu antecessor: “Ele não foi somente a maior figura da medicina sergipana de todos os tempos. Era basicamente um intelectual. Um intelectual que da província mirava  e acompanhava o mundo. Um intelectual que, com perícia incomum, manejava seu instrumental de cirurgião”.

Segundo um dos seus biógrafos, o saudoso Luiz Antônio Barreto, Augusto Leite teve dois momentos importantes na sua biografia. O primeiro, quando participou da fundação da Academia Sergipana de Letras, em 1929 e o segundo, quando criou em 1933, o partido político União Republicana de Sergipe, que o levou à Constituinte nacional, como Senador. Porém, com o Estado Novo, desgostoso com os rumos do país, Augusto encerrou definitivamente a sua carreira política e retornou à medicina, como já disse anteriormente.

Por suas mãos, muitas vidas foram salvas e muitas obras foram edificadas. Mãos que lutaram com a morte em nome da vida. Mãos que o senhor abençoou todos os dias, semeadoras da paz, no Vale das Agonias…Mãos que foram um presente do céu para todos nós! Mãos…que fizeram menor a dor de seus semelhantes…Mãos de Augusto Leite: mãos de paz, mãos de luz, mãos de amor!” (Freire Ribeiro).

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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