“Apenas a liberdade”

Edvaldo Alves de Souza Neto
Mestrando em História pela UFS
Orientador: Prof. Dr. Petrônio Domingues

Até os dias atuais, muito se questiona sobre os desdobramentos da extinção oficial do cativeiro no Brasil no dia 13 de maio de 1888. É um período permeado de incertezas, frente aos mais variados projetos que iam se construindo junto à necessidade de se estabelecer uma nova ordem após o enfraquecimento do binômio senhor/escravo. Dentro dessa dubiedade, é comum nos depararmos com a seguinte questão: “E depois da abolição, o que aconteceu com os libertos?”

A telenovela Sinhá Moça produzida pela Rede Globo, com uma primeira versão em 1986 e uma segunda em 2006, apresentou uma “possível” resposta para essa questão. Conforme consta na cena final da telenovela (2006), a chegada dos imigrantes italianos foi a solução encontrada pelos fazendeiros para resolver o problema da mão de obra nos cafezais. Aos europeus, delegaram-se os antigos espaços de trabalho com a constituição de novos contratos. Já não havia mais a imposição do tronco e do chicote, estes foram substituídos pelo “respeito mútuo” entre empregador e empregado. Aos negros, a atuação na cozinha ou a dura decisão de partir em tropa, sem direção ou alguma posse, no limite, apenas com a roupa do próprio corpo [1].

Essa visão propagada pela TV fortaleceu uma interpretação cristalizada no senso comum em torno desse período histórico, que muitas vezes chega a completar o enunciado televisivo ao apresentar o destino dos libertos como sendo as periferias das cidades. Assim, falar do ex-escravo durante o pós-abolição no Brasil é lembrar o final fatídico da referida telenovela.  Trata-se de reproduzir o discurso do “escravo coisa”, oriundo da maioria das universidades nacionais na década de 70 e que consequentemente invadiu o ambiente escolar.

E atualmente, o que a historiografia tem a dizer? Será que o fictício aqui em destaque reflete o fato histórico em questão?

O surgimento de uma nova historiografia da escravidão capaz de resgatar a agência dos escravos e, principalmente a constituição de um campo específico sobre o pós-abolição permitiu pensar o negro para além do período do cativeiro, trazendo em seu bojo, algumas questões que acabaram colocando em cheque as bases que sustentavam o discurso existente na cena final da aludida telenovela. Com isso, já não se pode pensar em uma realidade local e ampliá-la para todo o país. Sinhá Moça tem como parâmetro a então província de São Paulo, o que em si já torna esse discurso insustentável para pensar o conjunto brasileiro. A imigração europeia não foi uma realidade para todo o Brasil, existiu em localidades específicas, de tal forma que não podemos desconsiderar que Sergipe detém uma experiência distinta da versão difundida pela atração global.

Outro ponto a ser percebido e problematizado é a romantização dos libertos imersos em uma espécie de “anomia social”, tanto os que ficam quanto os que partem assumem decisões sem planejamento algum. E a ação desses sujeitos? Quais os critérios adotados e que influenciaram diretamente nas suas decisões?

O que as pesquisas vêm demonstrando em diversas regiões do país para além de uma análise econômica, são as diferentes percepções de liberdade, a luta pela manutenção e ampliação dos direitos civis e políticos, a constituição de redes comunitárias como forma de garantir a sobrevivência, a reconstituição das experiências africanas, entre outros elementos capazes de devolver a capacidade de discernimento desses personagens.

O pós-abolição no Brasil é um campo de pesquisa em construção, no entanto alguns mitos que permeavam tal área do conhecimento histórico já sofreram as primeiras rachaduras, a exemplo do suposto “silêncio das fontes” [2].  Não restam dúvidas que ainda há muito a ser pesquisado, é por meio da criatividade no trato com as fontes, respeitando as especificidades, que os historiadores brasileiros vêm respondendo de diversas formas àquela velha questão que apresentamos no início do texto. Por tanto, os primeiros resultados já são suficientes para nos mostrar que devemos encarar a telenovela Sinhá Moça como uma produção midiática e não como uma explicação histórica.

Notas:
1. Ver. Disponível em: < http://globotv.globo.com/rede-globo/sinha-moca/v/sinha-moca-recebe-os-imigrantes-italianos/1334789/ > Acesso em: 12/05/2015.
2. Ver. GOMES, Flávio dos Santos; DOMINGUES, Petrônio. Da nitidez e invisibilidade: legados do pós-emancipação no Brasil. Belo Horizonte, MG: Fino Traço, 2013.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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