Apontamentos sobre a redução da idade penal

O tema da redução da idade penal seja, talvez, uma das questões que melhor devem ser discutidas pela sociedade brasileira. Em geral, o assunto é tratado tanto pelos meios de comunicação comerciais quanto por representantes públicos pelo apelo emocional, principalmente no calor de alguma infração cometida por adolescente. E aí informações são omitidas, dados são manipulados e  argumentos mais aprofundados pouco são considerados.

Assim, fica prejudicado o debate sobre as reais causas da violência no país e sobre a histórica exclusão e desigualdade raciais e sociais.

Nessa quarta-feira (14), uma série de iniciativas em todo o país busca reverter esse cenário e debater publicamente a questão da idade penal, a partir da perspectiva dos direitos das crianças e adolescentes.  Em Sergipe, a principal atividade é uma audiência pública na Assembleia Legislativa, às 14:30h, promovida pela Frente Parlamentar dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Dada a importância do tema, reproduzo abaixo um artigo* publicado há um mês nesta mesma coluna.

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Em tempos de inúmeras propostas que visam a redução da idade penal (apenas no Congresso Nacional existem 25 projetos), é fundamental resgatar a importância do Estatuto da Criança e do Adolescente – que neste 13 de julho completa 23 anos –, reafirmar o seu caráter avançado no que diz respeito à garantia dos direitos de crianças e adolescentes e, ao mesmo tempo, discutir como o Brasil ainda está distante de assegurar a proteção integral de meninos e meninas.

É a partir do ECA que crianças e adolescentes passam a ser vistos como sujeitos de direitos. Antes de 1990, até quando vigorou o Código de Menores (promulgado em 1927), crianças e adolescentes eram objeto de vigilância e tutela do Estado, e não indivíduos que têm direitos e necessidade de proteção. É a partir do ECA, portanto, que as opiniões e direitos fundamentais de meninos e meninas são considerados no momento de formulação das políticas públicas e na agenda política, econômica, social, orçamentária e educacional.

A principal mudança de paradigma trazida pelo ECA e, infelizmente, ainda pouco conhecida pela população, pouco difundida pela mídia e pouco efetivada pelo poder público é, sem dúvida, a noção de proteção integral. O artigo 4º do estatuto determina que “é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com ABSOLUTA PRIORIDADE, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”.

Ao estabelecer esse conceito, o ECA aponta que os direitos e a proteção de crianças e adolescentes devem ter prioridade absoluta nas políticas públicas de educação e saúde, nas ações de cultura, esporte e lazer, nos orçamentos públicos, nos conteúdos da televisão e do rádio, etc…

O artigo 4º do ECA também rompe com o modelo de centralização do poder sobre as crianças e adolescentes ao afirmar que a proteção desses segmentos é uma co-responsabilidade da família, do Estado e da sociedade. Ou seja, cabe ao poder público, aos pais, mães e demais familiares e a toda a população garantir a proteção diferenciada e prioritária a indivíduos que estão em pleno desenvolvimento físico, psicológico e moral.

Essa perspectiva da garantia dos direitos e da proteção integral das crianças e adolescentes, porém, é abandonada, negligenciada pelos defensores da redução da idade penal. A opção mais rápida e “simples” de responder a um clamor popular (alimentado em grande medida pelo sensacionalismo das coberturas midiáticas) quando acontece algum ato infracional de alta gravidade cometido por jovens com idade inferior a 18 anos é imediata: reduzir a idade penal, retirar a liberdade de meninos e meninas, encher ainda mais os presídios do país e, assim, submeter crianças e adolescentes a condições degradantes e subumanas já conhecidas pelos adultos que cumprem penas em “depósitos de gente”.

Esse caminho é apresentado, vez ou outra, por políticos (deputados, senadores, governadores, prefeitos…) que se dizem “preocupados com a violência no país”. Porém, se a preocupação fosse, de fato, a criminalidade, caberia a esses senhores, enquanto representantes públicos, encarar os problemas de frente, indo às raízes e propondo, em diálogo com a sociedade, saídas que visem a garantia, e não a retirada, de direitos.

Se a redução dos índices de violência praticados por crianças e adolescentes (que são mínimos, se comparados aos crimes cometidos por adultos, como pode ser verificado no quadro 1, ao final do artigo) for realmente a preocupação dos que defendem a redução da idade penal, estes deveriam ouvir o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Apenas ouvir, não. Ouvir, conhecer e buscar meios para efetivar as seis medidas que o Conanda propõe para o enfrentamento à violência: o não contingenciamento dos recursos orçamentários para as políticas públicas da infância e adolescência; o urgente encaminhamento de um projeto de lei que regulamenta a execução das medidas socioeducativas; a imediata implementação do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE (lei já formulada a partir de articulações entre a sociedade civil e o poder público), com a liberação de recursos para tal; o cumprimento do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária; e o fornecimento, por parte do Estado, de condições efetivas para a implantação dos dispositivos contidos no ECA.

Se a redução dos índices de violência praticados por crianças e adolescentes for realmente a preocupação dos defensores da redução da idade penal, estes deveriam parar de enganar a população afirmando que “vários países estabelecem 12, 14 ou 16 anos como idade penal” e buscar os dados oficiais e verdadeiros sobre a idade penal em outros países (alguns podem ser conferidos no quadro 2, ao final do artigo).

Se a redução dos índices de violência praticados por crianças e adolescentes for realmente a preocupação dos defensores da redução da idade penal, estes deveriam parar de afirmar que “o ECA protege menores infratores”, ler o Estatuto da Criança e do Adolescente de cima a baixo e, assim, saber que em seu artigo 112 estão previstas como medidas socioeducativas proporcionais ao ato cometido: a advertência, a obrigação de reparar o dano; a prestação de serviços à comunidade; a liberdade assistida; a inserção em regime de semi-liberdade; e a internação em estabelecimento educacional.

Não restam dúvidas: a redução da idade penal não combate a criminalidade, mas, ao contrário, pode aprofundar os ciclos de violência ao colocar crianças e adolescentes em contato com um mundo sem qualquer atenção do Estado (presídios). Além disso, reduzindo a idade penal o poder público encontra o caminho fácil de se isentar da sua responsabilidade de efetivar políticas públicas que previnam a violência e garantam os direitos das crianças e adolescentes.

Quadro 1 – Responsáveis ou vítimas da violência?

Dados do Ministério da Justiça revelam que apenas 0,9% dos crimes cometidos no Brasil são praticados por adolescentes entre 16 e 18 anos. Desse total, apenas 0,5% são homicídios e/ou tentativas de homicídios.

Por outro lado, o Mapa da Violência aponta que os jovens representam 67,1% das vítimas de armas de fogo no Brasil. Ou seja, as crianças e adolescentes são vítimas, e não responsáveis ou fomentadores, da violência.

O mesmo estudo mostra também que o Brasil é o 4º país que mais mata crianças e adolescentes no mundo, ficando atrás apenas de El Salvador, Venezuela e Trinidad e Tobago. Anualmente, para cada cem mil crianças e adolescentes brasileiras, aproximadamente 44 são mortas.

Entre 1980 e 2010, o número de mortes violentas de crianças e adolescentes cresceu 346%. E o alvo preferido são adolescentes negros. No país mais negro fora da África, o número de jovens negros assassinados é 133% maior que o de brancos assassinados.

Quadro 2 – Números internacionais

A Convenção sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU), ratificada por vários países, incluindo o Brasil, estabelece que é proibida a aplicação de penas a crianças e adolescentes iguais ou superiores àquelas aplicadas aos adultos. Embora a Convenção não determine uma idade comum, a tendência mundial é de 18 anos.

Porém, de maneira enganosa é divulgada a idade de responsabilização por atos cometidos (que no Brasil é de 12 anos) como sendo a idade penal. A tabela abaixo exemplifica isso.

País

Responsabilização por ato infracional

Idade penal

Alemanha

14

18/21**

Argentina

16

18

Bélgica

16

18

Brasil

12

18

Colômbia

14

18

El Salvador

12

18

Eslováquia

15

18

Eslovênia

14

18

Espanha

12

18/21**

Equador

12

18

França

13

18

Grécia

13

18/21**

Guatemala

13

18

Holanda

12

18

Honduras

13

18

Itália

14

18

Japão

14

21

Paraguai

14

18

Peru

12

18

**Na Alemanha, Espanha e Grécia há um sistema de “jovens adultos”, no qual mesmo após os 18 anos, a depender do estudo sobre as motivações dos atos cometidos, podem ser aplicadas medidas não-penais aos jovens.

*Este artigo foi escrito em parceria com Débora Melo, jornalista e militante dos direitos da criança e do adolescente.

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