Um dos grandes prazeres que possuo é frequentar livrarias, sobretudo os sebos, onde é sempre possível uma obra magnífica, esquecida em meio à poeira, retendo ainda o deleite do leitor anterior, sua pegada acariciante em convite de ternura.
Em alguns casos, a depender do realce enfatizado, o livro resta mais sábio quando traz consigo o bom comentário destacado, aquele grifo imperativo, por avive a ser refletido em futuras leituras, ou pelo menos para consignar uma paisagem encantatória de um passeio bem fruído pelo ledor que ali passeou.
Se tal anotação não se realizou como um convite à revisitação ou recapitulação de deguste a um novo deleite, restará sua ênfase de estima e importância, amplificadora do valor original da obra, ou também, um seu borrão por mau gosto até, como sói todo prosseguir que se apetece indiferente.
Há livros que nos conquistam só pelo título.
Há inclusive uma ciência toda cheia de regras para conquistar o leitor enquanto consumidor apenas. Nela tudo é feito para impactar, chamar a atenção, suscitar o exame e a compra somente.
É a regra comum do marketing. Aquilo que não serve como âmago, tem sua serventia na moenda mercantil, regendo um balanço que não tolera nenhuma perda sinestésica; filé, acém, chupa-molho e até aponeurose têm todos sua serventia para o carnívoro.
Neste contexto de pura venda, o livro, qualquer livro, só vale a pena se for vendido. Não interessa se será lido ou… esquecido.
Mas, dir-me-á a neo-idiotia da objetividade internet: “Há tanta coisa boba para se ler que bem melhor vale o “meme”, uma tolice qualquer que possa “viralizar”, mundo à fora”.
Como sou ainda resistente de um mundo que partiu, sou de um tempo em que o vírus era temido.
O vírus ensejava uma contaminação dita viral, por mortal e letal muitas vezes, algo a ser combatido mediante prevenção e antibiose.
Hoje, o sucesso desenfreado é um desejo viral, um almejo irrestrito amplo e global; “Viralizar” virou uma síndrome de coisa boa.
Um livro bom, porém, ainda tem o seu lugar enquanto reflexão necessária e como antídoto ao embrutecimento das massas.
Assim, visitar uma livraria, uma biblioteca é sempre uma delícia; seja aqui, ali e alhures onde o destino me tem inserido.
E como o destino me tem feito viver e poder viajar bastante, já pude contemplar a aurora boreal nos confins da Lapônia, ver do Sol o ocaso ao mar no Cabo da Roca, na mais ocidental extensão Lusitana, o seu ressurgir na Estrela Serra, notável para mim nordestino, que sempre está a ver o astro-rei despertar no mar e recolher-se na montanha.
Viagens que me levaram a seguir rente à Taprobana, ver a Índia, seus mistérios exóticos e especiarias, tudo que desafiava sonhos e limites, ontem e hoje, à alma humana. Conferir a amena balneabilidade nos diversos oceanos, até para descarrego de mandingas e maus-olhados: o Atlântico, por comum e rotineiro, o Pacífico, por mansidão e plenitude, quase infinita, e o Índico, por exótico, como assim o exige ainda a precisa arte de bússolas, sextantes e astrolábios, e tantos utensílios seus sequentes e bem mais sábios.
Viagens que me permitem a imersão em rios e mares longínquos e muitas visitas a livrarias, quando me delicio acariciando muitos livros, mais das vezes tentando destrinçar seu conteúdo, afinal sou um monoglota desavergonhado que se arvora em adentrar por outras searas idiomáticas, claudicando em ousadia de superação sem recuos.
Como ler em russo, por exemplo, dinamarquês, sueco e norueguês, idiomas de alfabetos estranhos?
O que dizer de telugu e tâmil, línguas dravídicas do sul da Índia, bem mais faladas que o nosso português, que perde para o hindi em centena de milhões bem mais, mesmo com as armas e os barões assinalados e ao mundo espalhados? Ou o chinês, e japonês, com seus ideogramas assaz complicados?
Sem falar que este é um nosso defeito, e meu em particular, o ser monoglota, deixando-se passar pelo tempo, fiel rebento inercial deste país continental.
Somos um povo monolíngue, analfabeto dirão também, afinal já repetiram de Eça que “o português é o túmulo do pensamento”.
Mas, se o alemão é terrível com suas desinências, e o inglês todos pensam saber e bem traduzir, o francês me atrai sobremodo, embora sua produção literária venha se diluindo na grande mistura europeia denunciando um caldear barbárico, cada vez menos gálico.
Neste particular, passeando distraidamente pelas ruas de Paris, nas imediações confluentes da Avenue de Wagran, da Rue Faubourg Saint-Honoré, da Avenue de Ternes, naquela região de Ternes, onde se encontra também um bom mercado de mariscos, encontrei um “bouquiniste” que espalha seus livros a céu aberto.
Não se trata de uma livraria destacada, apinhada de leitores, onde a consulta das obras é sempre interrompida e me desperta um certo incômodo por instigar um questionamento, mais das vezes inconveniente.
Este “bouquiniste”, igual àqueles cujas bancas se agarram aos parapeitos dos diversos cais do Sena, tem sido um dos meus locais preferidos nos meus passeios, em longas caminhadas pela Cidade-Luz.
O Filósofo alemão Peter Sloterdijk |
Dita esta digressão inconveniente a título de prolegômenos em “viagem na maionese", quero me referir a um livro notável que adquiri ali, de autoria do filósofo alemão Peter Sloterdijk, obra que não se encontra ainda publicada no Brasil, penso eu .
Originalmente este livro foi publicado em 2014 pela Suhrkamp Verlag, Berlin com o título “Die schrecklichen Kinder der Neuzeit” , cabeçalho que bem poderia ser entendido como “As crianças terríveis da idade moderna”.
Já a versão francesa que me permitiu a leitura pertence ao acervo das Éditions Payot & Rivages, Paris, 2016, e traz como título a célebre frase “Après nous le déluge” (Depois de nós o dilúvio), atribuída a Jeanne-Antoinette Poisson, a Marquesa de Pompadour, celebre cortesã, inteligente e bela, amante favorita do Rei Luís XV.
A frase de Madame Pompadour é utilizada por Sloterdijk (um autor destacado da filosofia contemporânea, nascido em 1947, alguém da minha geração, de quem sugiro uma procura no Google, porque há uma alentada análise de sua obra, inclusive com debate audiovisual no Youtube, estas maravilhas da modernidade, cultura macerada sem custo nem ônus). Frase citada, mais das vezes em alegria histérico-galante de uma conversa frívola, como algo egoísta em bolhas de champanhe, indiferente à degradação de modos e costumes da humanidade, numa época de fastígio e luxo irresponsáveis do Ancien Régime do absolutismo Bourbon, mas que bem se coloca permanentemente numa maré sempre crescente, que constata pouco aprendizado da humanidade com os próprios erros e desvios, para o aperfeiçoamento do ser, mas que ressurge como desaprendizado, rebarbarizando o homem como jamais se suporia no cometimento de novas misérias.
Jeanne-Antoinette Poisson – Marquesa de Pompadour (1721-1764). Favorita do Rei Luís XV da França – Pintura de François Boucher (1703-1770) |
Neste particular, espanta-nos sobremodo os recentes acontecimentos no noticiário; os ataques terroristas, os assassinatos coletivos, os massacres em guerras intermináveis como a da Síria, e até os motins com degolamento de facções nos presídio de Amazonas e Roraima.
Temas que bem vale poliédrica interpretação.
O mundo tem jeito?
Podemos ter esperança de um porvir melhor em demanda apocalíptica na qual o cordeiro irá pastar da mesma relva com o lobo?
Chegará o tempo em que o homem não mais irá degolar seu desafeto, sem necessidade de peias e gradis, socializados e ressocializados em afagos e sorrisos?
E as gerações que surgirão estarão sempre com o olhar fixo no retrovisor do que passou para não reproduzi-lo jamais, ou isso é apenas um discurso politicamente correto que precisa ser adotado em demanda, senão à santidade, pelo menos à tolerância, e…, torcer bastante para ver se vinga?
Ou o discurso frívolo de Madame Pompadour já nos assusta por não ser de todo politicamente incorreto?
E o que dizer da indiferença e consentimento de vastíssima maioria do eleitorado de nosso entorno e circunstância, endossando o secretário boquirroto do Governo Temer, desejando sucessivos massacres nos calabouços brasileiros?
Não é este um bom tema para pesquisa de opinião?
Se alguém disser que aprova o acontecido, não é um sinal de que Jeanne-Antoinette Poisson, a Marquesa de Pompadour estaria ainda com razão em vendo a coisa muito mal e cada vez bem pior?
Ainda voltarei ao tema.