Aracaju no meu viver.

Quando eu nasci, Aracaju estava vivendo a ressaca de uma noite de festas. Comemorava-se a ascensão da nova constituição estadual, nascida em 1947, em pleno regime de liberdades após o período autoritário de Getúlio Vargas.

 

Eu nasci no número 192 da Rua de Pacatuba. Neste tempo minha Rua era uma das mais destacadas artérias da cidade. Por ali passava tudo, de procissão a enterro, desfile de bloco de carnaval, marcha de soldado, passeata de estudante, sem falar que o leite vinha de carrocinha e o pão em cesto e quentinho.

 

A Rua de Pacatuba era e continua limitada pelas praças Fausto Cardoso e Camerino.

 

Na primeira, a Praça Fausto Cardoso, encontravam-se os poderes legislativo e executivo de Sergipe; o governo no Palácio Olímpio Campos e a Assembléia no Palácio Fausto Cardoso. Hoje estes palácios ali estão, conservando o nome e sem mudança de feitio, mas exibindo des-feitio humano, de rastro e degradação, dizendo somente o que foi, o que não é nada por sinal, como bem dizia o poeta que não amava a pegada marcada, por só pesada.

 

Mas a Praça dos Palácios também exibia dois grandes hotéis, o de Rubina e o Sul Americano, ocupando duas esquinas, e um casario rasteiro, espaço que continha uma sorveteria Aurora de lembrança fugaz, algumas repartições que não existem mais, restando por persistentes apenas somente os prédios do arquivo e/ou biblioteca pública, e a sede da Delegacia Fiscal Federal.

 

No mais tudo foi derrubado, surgindo os cinqüentenários Edifícios Walter Franco, São Carlos e do Cine Pálace, então o melhor cinema da cidade, e em tempos mais recentes a prediação do Poder Judiciário, o Fórum Tobias Barreto, e da nova Assembléia Legislativa no Palácio João Alves Filho, bem como grandes espaços vazios usados como abrigo e estacionamento de automóveis.

 

Se a Praça Fausto Cardoso era vibrante e importante, a Praça Camerino era tranqüila e silenciosa exibindo uma arbórea extensão residencial, e um calçadão excelente para os volteios de bicicleta, centrada com a estátua de Sílvio Romero, livro à mão e de costas ao rio, contemplando o lado mais aristocrático da Praça e seu casario.

 

A Praça Fausto Cardoso de meu tempo de menino era cortada de jardins num colorido de flores, verdadeiro convite para o deleite das tardes e noitinhas à brisa vinda do Rio Sergipe, acolhedora e amena.

 

Neste tempo as águas estuarinas do Sergipe por límpidas e convidativas, recebiam levas de banhistas à sua margem direita nas manhãs ensolaradas. Margem que era e continua nossa, enquanto do outro lado a paisagem exibia o longínquo o colar coqueiral da ilha de Santa Luzia. Uma distância maior, porque nesse tempo ainda não existia a canoa motorizada de Xeba, e a travessia se fazia lenta ao sabor da correnteza com velas ao vento, em pirogas preguiçosas e jangadas perigosas.

 

Vejo-me criança à margem do rio Sergipe na cacunda de meu pai. Seria um dia de domingo talvez, porque eram muitos os banhistas no seu leito. Havia inclusive um trampolim nas imediações do Colégio do Salvador, ou mais além, acessível somente aos bons nadadores que os havia bastante.

 

Alguns desses nadantes atravessavam o rio a nado, como Zé Peixe e seus irmãos, raça anfíbia que se perpetuou como história viva e que ainda permanece conosco, em braçadas mais ousadas, abraçando ainda o doce rio salgado, hoje menos belo, por maculado.

 

Porque o Rio Sergipe sempre osculou salgadamente a Rua da Frente da cidade, quer por cota rala e fundura rasa frente ao mar, quer porque o subsolo sergipano é montado em farta camada salina; os sais evaporitos que seriam a grande esperança do Estado.

 

E o estuário era tão salgado que alguns, por desvio ou pouco avio, o chamavam em desapego de “a maré” , quando se lhe pescavam muitos siris de isca e jereré. Mas que hoje restou pior, virando caudal esgoto da cidade que lhe amou em pequenez.

 

Um vício da cidade e do bicho homem que em devolvendo o beijo amoroso, no rio resolveu espalhar e emporcalhar com a própria escumalha, em dejeção e excremento.

 

Isso desde o meu tempo de menino, só para historiar a evolução fecal de coliforme partindo de eras antanhas das “fábricas de cocô”, como assim eram apelidadas as deficientes e mal afamadas estações elevatórias de efluentes, e que eram em número de três; a primeira localizada no oitão da alfândega, ao lado do palácio Serigy e das suas esféricas bolas de cimento armado, a segunda na travessa que prenunciava a larga Avenida do Barão do Maroim, e a terceira no conjunto mais além da fundição, junto ao Cotinguiba Clube ou ao Sergipe seu irmão, nas regatas e no futebol.

 

Hoje o rio é quase cloaca, um impeditivo para as disputas de regatas e os demais esportes náuticos. E os governos se sucedem em multivariada ideologia, todos bostando no rio. Uns defecando escondidos, outros obrando abertamente, em pouca vergonha ou envergonhados, mas todos cagando no rio.

 

Uma cagação bem ampliada, porque a cidade no meu tempo de menino era pequena e limitada, que chegava a ser contida por linhas de bondes decadentes, como traços limitantes dos contornos citadinos. Tempo em que a fossa estuarina não se fazia visível como agora, e era agradável os passeios de bonde que me pareciam cômodos e eficientes.

 

Relembro estes passeios acompanhados de minha Nanan, a nossa cozinheira, segunda mãe que tivera, em carinhos e atenção, com o bonde seguindo uma linha do centro ao sul pela Rua de Itabaiana , salvo engano, depois virando na Avenida Augusto Maynard, estendendo-se em demanda da Rua da Frente, a pouco lembrada Ivo do Prado, depois atingindo a o Bairro Industrial e chegando até o sopé da ladeira do Santo Antônio.

 

Mas se o rio transmudou em cloaca os bondes foram logo aposentados, sendo-lhes retirados os trilhos em desuso exílio de sucata e ferro velho, igual ao relógio de quatro faces, que nunca exibira exatidão uníssona, bem posto e bem centrado na pavimentação a paralelepípedos entre o jardim da retreta dominical e o entre – vão dos palácios executivos e legislativos, local onde se implantou uma herma do Almirante Barroso junto ao primeiro e último mictório público.

 

Mijadouro que não mais existe, mas que por uso perfunctório separava a grande tragédia política da cidade; Fausto não mirava Olímpio, e este mesmo que o quisesse tinha na frente um panteão miccional a lhe cobrir o empenho de uma possível mirada fatal.

 

Voltando agora a esta sequencia de praças chegávamos à sede matriz da igreja catedral, cercada por um belíssimo parque zoológico com direito a aquário, sinuoso leito de canal, repleto de peixes e alevinos, despertando nos meninos o ludo e a inspiração, com direito a araras esganiçadas em farto viveiro de pássaro, capivaras, cotias, caititus e outros roedores, sem falar numa onça que ficava por detrás da igreja, e outros animais como macacos e papagaios, com direito a sabão de macaco, uma frutinha espumosa de fedor empesteante que caia das árvores junto a muitos oitis amarelinhos, todos fustigados pelo lento e pegajoso andar do bicho preguiça,

 

Assim era Aracaju, com o Parque Teófilo Dantas engalanado para as feirinhas de fim de ano, onde o carrossel do negro Tobias reinava ao centro em apitos de corridas.

 

Parque de muitos brinquedos. Dos barcos puxados a corda, aos carrosséis aviões; dos chuveiros e rodas gigantes, das rifas e dos tiros ao alvo em espingardas de ar comprimido, pescarias de prenda e laçadas em jogo de argola, sem falar da série de roletas nos jogos par ou impar, vermelho ou negro, com fichas e placas coloridas faiscando de luzes em sons atraentes de promessas.

 

E porque não falar dos picolés da Yara e do São José, e do sorvete da Cinelândia, preenchidos na casquinha às colheradas? Ah, que saudade do big-bom e do picolé vitaminado da Yara, enrolados cuidadosamente em papeis sedosos! Que dizer também do cachorro quente de Seu João, inigualável? Um pão Jacó apenas, preenchido com carne frita com batatas?

 

Que dizer das ruas calmas de pouca insegurança, tempo em que os automóveis vinham e voltavam pela mesma via sem contramão, universo de veículos contado a dedos, com as placas enumeradas segundo um status de importância tola, mas social?

 

Que dizer de outro tempo, onde já maior eu percorria a cidade nos pedais de uma bicicleta, sem vencer as suaves ladeiras do Santo Antônio e as da Rua de Laranjeiras, terríveis, sobretudo a de sentido oeste leste. Tempo em que a cidade se extinguia nos areais suíços do oratório Dom Bosco e de Bebé, nos apecuns alagados junto ao fundo da Igreja e do Colégio São José, justo na Praça Pinheiro Machado onde Tobias Barreto imperava solitário e esquecido, e do Aribé bem longínquo, cedendo o próprio nome a um Siqueira Campos de descabida homenagem, sem falar da Tebaida, do Carro Quebrado e da terrível estrada Timoteana que desapareceram e foram perdidos…

 

Falar do Aracaju de Santo Doutor, de Escarrate e do Moleque Namorador, que saiam xingando e ameaçando surrar de cacete os meninos que os provocavam. Aracaju de Maria Inocentinha, Sá Maria dos Cachorros e de tantos loucos e pedintes. E de tantas que se vendiam nos prostíbulos do Vaticano, o nosso mercado em cópia espúria de Bramante.

 

Aracaju de ancoradouro estreito onde os parcos navios vencendo a estreita barra aportavam à ponte do Lima, o principal trapiche portuário. Sergipe que dizia querer um porto para firmar o Estado em soberania. E que depois o porto chegou e muito pouco vingou.

 

Aracaju de praias distantes como Atalaia Velha, que era uma viagem para lá chegar, vencendo uma ponte que desabou, e Atalaia Nova, esta bem mais distante ainda, lá do outro lado do Rio Sergipe, difícil de atravessar, onde o sonho de uma ponte era impossível. E sem falar do Mosqueiro de impossível acesso.

 

Aracaju da praia formosa; de uma balneabilidade lodosa e duvidosa, recebendo águas palustres pelos canais das quatro bocas, onde o banho era vertido por bueiros traiçoeiros.

 

Aracaju heróica e rebelde exibindo coragem e altivez brandindo armas nos movimentos tenentistas do audaz 13 de Julho, hoje mais esquecido que exaltado.

 

Aracaju cidade projetada em tabuleiro de xadrez, segundo a concepção do Engenheiro Pirro e conforme a ousadia de Inácio Barbosa e de João Gomes de Mello, o Barão de Maroim. Mas que depois perdendo o traço e seu compasso, rejeitou a regra e a simetria, preferindo o caos como engenharia. Um pecado recorrente com a prediação teimando em avançar no passeio do público e no espaço urbano das ruas

 

Aracaju, Cajueiro de Papagaios, no dizer de muitos e de Garcia Moreno, em seu livro de crônicas assim nomeado.

 

Aracaju de tantas saudades e encantos. Aracaju cantada em muitos versos e em muitos hinos, como os de Antônio Feijó, Freire Ribeiro e Alfeu Meneses (Hino do Centenário de Aracaju), que poucos cantam por não mais conhecerem o seu refrão, e outros como José Gentil Leite (Hino de Sesquicentenário de Aracaju), Leozírio Guimarães (Aracaju), Antônio Garcia (Aracaju, uma estrela), Cláudio Miguel (Cheiro da Terra), Antônio Vilela (Atalaia), Hugo Costa (Paisagem de Aracaju), e tantos outros bem ou menos recitados como podem ser ouvidos nos sites abaixo do

Youtube:

 

http://www.youtube.com/watch?v=AKk3LXTvA2A

http://www.youtube.com/watch?v=aieQFNtC5h4

http://www.youtube.com/watch?v=HHDguH48ZuA

http://www.youtube.com/watch?v=-fJLQpxiJuQ

http://www.youtube.com/watch?v=XcTu3qqeV34

http://www.youtube.com/watch?v=ufoSpR_4huI

http://www.youtube.com/watch?v=moPFJqIk_74

http://www.youtube.com/watch?v=hVqZ63UQEOI

http://www.youtube.com/watch?v=cEEo-nlboS0

http://www.youtube.com/watch?v=ZRy83TskWho

 

E outros cantos a Aracaju de autoria desconhecida, como a cantata infantil que apresento por final, sem som e sem visual, só por lembrança da minha Tereza menina, neste dia sorridente do 155º aniversário da cidade Capital do meu viver:

 

Aqui em baixo deste céu azul

Vive coberta pela mão divina

Neste torrão tu és de norte a sul

A linda e bela cidade menina.

 

O Cotinguiba a beijar-te a fronte,

Tão docemente com carinhos mil.

Ali também o coqueiral defronte

Ama e protege a caçulinha do Brasil

 

Aracaju, tão pequenina!

Tua beleza encanta a toda a gente

Quem a olhar-te fica enamorado,

E o coração apaixonado sente

 

Lindo cenário de beleza,

Beleza rara deste céu primaveril.

Aracaju presente que Papai do Céu

Ofereceu para o orgulho do Brasil.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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