A tela em branco do computador, sem brotar palavras, para qualquer jornalista/escritor tem o mesmo sabor da morte longa. É um estar preso dentro de sua própria cabeça, se debatendo como um peixe quase morto. Há pouco mais de um mês eu venho ensaiando em meus pensamentos escrever sobre Araripe Coutinho e me debatendo para encontrar a senha deste código indecifrável que foi este homem-poeta.
Era dia 09 de dezembro, uma terça-feira pós-feriado com gosto de preguiça. Eu tinha acabado de chegar ao trabalho quando meu celular tocou. Um amigo me passou a notícia por cima, querendo ele também ter certeza de que era falsa. Eu mesmo liguei para o celular do Poeta questionando a ele se estava tudo bem. A voz que respondeu não era de Araripe, mas de outro homem que me confirmou o óbito.
Meu peito fechou num sopro. Não era dor, mas como se um caldo grosso fosse tomando meu corpo. Na verdade era meu sangue aquecendo as lágrimas que saíram fervendo dos meus olhos. Fiquei triste. Lembro que tinha saído de casa com roupas escuras naquele dia, numa espécie de pré-luto. Há dias não usava cores escuras. Não tinha premeditado nada, era a vida.
Pedi licença a chefe do meu setor e mudo parti para a casa de Araripe, querendo ainda constatar a confirmação da morte, porém sabendo se tratar da realidade do dia. Lembro que não passava nem um táxi. Me perguntei como é que a vida se encarregava de desviar os táxis quando mais precisamos deles. Corri para um ônibus mesmo, partindo do Siqueira Campos sentido Desembargador-Barão de Maruim. Parei na Praça da Bandeira com vergonha de ser notado em minhas lágrimas dentro da condução.
Não sei chorar discreto. Morrerei sem aprender (acho feio, mas sou assim). Fui tentar pegar um táxi até o bairro Industrial, onde o Poeta residia. Outra chateação… Em resumo: tratei mal um taxista que estava dormindo num ponto. Deixei o táxi antes de abrir a porta do carro. Eu precisa voar nas costas do Super-Homem e não de uma lesma. Saí deixando o homem falando sozinho, enquanto despertava. Não costumo ser grosseiro, mas estava descontrolado. Saí meio louco vagando pela região do bairro Cirurgia até que consegui entrar num táxi. Entrei. Fechei a porta. Falei o itinerário. Chorei porque estava cansado. Chorei porque meu amigo estava morto. Chorei até porque tinha destratado rapidamente um desconhecido. Não lembro bem se passou a notícia no rádio do táxi ou se eu comecei a desabafar, sei que o assunto foi Araripe morto, solidão e a vida. Todo taxista é meio psicólogo por excelência, ainda bem.
Ao entrar na casa do Poeta já encontrei um circo armado. Como ele tinha morrido logo após uma segunda de feriado, rádios e tevês não tinham muitas pautas e com isso todos os holofotes estavam para Araripe. Na antessala de seu quarto encontrei várias câmeras ligadas, pessoal das rádios fazendo flashes ao vivo. A porta entreaberta e o corpo dele de relance lá no fundo. Achei tudo demasiadamente pesado. Ele não merecia. Nem os colegas de profissão também, sabemos que jornalista tem parentesco com os urubus quando se trata da morte. É questão de sobrevivência.
Entre tantas cenas, lembro de ter entrado no quarto de Araripe e vê-lo morto, estirado na cama, vestindo uma espécie de bata indiana. Lembro do pessoal da funerária falando coisas sobre a vestimenta do morto para o funeral. São tantas preocupações nesse momento. Alguém decidiu essas coisas pequenas. Lembro de querer tocar no meu amigo, mas não conseguia me mover em direção a ele. Preferi sair do quarto porque estava muito movimentado. Entre choros e espaços em brancos, lembro ainda de ter ficado na sala-de-jantar, onde tantas vezes almocei com Araripe, sentado no braço do sofá chorando como se a qualquer momento alguém fosse ao meu encontro ou ele mesmo chegasse, com sua língua presa, falando barbaridades, mas Araripe estava morto. Seu corpo foi enterrado de forma simples no Cemitério São Benedito, com poucos amigos e algumas homenagens numa quarta-feira, 10 de dezembro. Acho que morrer num domingo seria mais poético, mas não se pode escolher o dia da própria morte quando se depende do destino.
Araripe sempre foi de agregar, mas no fundo era um cara solitário. Sua ausência será sentida realmente por poucos que entenderam que ali, em meio a tantos desatinos, existia um operário da arte. Ele vivia de sua escrita, de seus poemas. Morreu sem lançar oficialmente seu último livro “Coração de Chopin” e isso me engasga até agora enquanto escrevo este texto. É difícil segurar o choro quente, de novo. Sei do que se trata, pois também sou jornalista e escrevo para sobreviver. Sei que ele morreu triste com tantos “nãos” recebidos ao longo da vida.
Araripe buscou a fé em Deus, nos homens e até na escrita, e se às vezes um destes três lhe virou as costas, o Poeta, certamente, soube perdoar. Acho que às vezes precisamos perdoar Deus também, ninguém é perfeito. Essa lição foi Araripe quem me ensinou.
Ele não guardava rancor de ninguém, tinha coração bom. Tomava banho nu igual a um curumim. Falava verdades em tom de brincadeira e brincava encenando um teatro dramático bem verídico. Comigo foi sempre um amigo, até no dia em que me deixou na fila do cinema e partiu para a sala sem pegar meu ingresso na bilheteria. Isso foi no carnaval do ano passado. Fiquei puto, mas depois ele recitou alguma poesia via fone, disse que me amava e eu ri. Nunca brigamos.
Em nossa última vez juntos, na inauguração-boca-livre de um grande empreendimento da Capital, dançamos e bebemos tantos proseccos que estranhei. Ele não era de beber, mas naquela noite estava radiante. Rejeitou voltar pra casa cedo e ficamos rindo dos caretas e conversando pelo olhar (tínhamos essa técnica para falar sem palavras). Ele me tirou pra dançar e ensaiamos passos sem nexo, mas que para nossa amizade faziam todo sentido. Foi a nossa despedida. Tiramos selfies e lembro de ter dito a ele que entendia tudo que ele estava passando. Queria que ele se abrisse comigo, mas recebi um sorriso de moleque e um abraço de amigo verdadeiro. Ele sabia me respeitar e eu sempre deixei claro minha admiração e amor por ele. Passado alguns dias, ele colocou uma foto minha na coluna que assinava no Jornal da Cidade me tecendo vários elogios. Fiquei corado.
Semanas depois liguei pra Araripe, quase de madrugada, mandando ele retirar uma foto publicada em seu próprio Facebook. Era desnecessária tal exposição. Na imagem ele aparentava debilitação e ansiava por atenção. Ele me ouviu, conversamos e lhe disse que muitas pessoas curtiam as fotos dele, comentavam, mas que não faziam nada em prol. Lembro agora da voz dele me dizendo: “É mesmo né, Jaime?”. Um segundo depois de desligarmos, ele reeditou o post e excluiu a foto. Dias depois ele voltou a publicar fotos apresentando mais problemas de saúde. Eu olhei e fiquei bravo com ele, porém não liguei para passar sermão. Sabia que Araripe era senhor de si e só fazias suas próprias vontades.
Fiquei órfão de sua doçura, de suas palavras de amor. Quando fazia um almoço pra mim, era só pra mim. Era uma forma de dizer que eu era especial pra ele. Tantas pessoas foram especiais pra ele, mas ele morreu só “como alguém que nunca esteve aqui”. Ao ver meu amigo morto, deitando em sua cama, lembrei que todos nós morreremos sozinhos.
Eu já sabia disso, mas foi Araripe quem me mostrou a realidade.