ARMANDO DOMINGUES, LAURO PORTO E A BENGALA

“Um arrepio na noite…
De repente,
um homem morto na rua.
O rosto permanece vivo das suas palavras.
Dos cantos dos olhos descem dois grandes rios.
Onde irão parar esses rios de tão intensa alvura?
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(José Sampaio)

        

O médico e historiador Antonio Samarone exibe a bengala que pertenceu a Dr.Armando Domingues.

Na semana passada recebi uma mensagem de Aurélia Porto, médica, filha de Dr. Lauro Porto, vulto da Medicina de Sergipe que neste ano, se vivo estivesse, estaria comemorando 100 anos. Disse-me ela: “Achamos a bengala, não sei como, mas achamos a bengala!”
         Após a morte de Lauro, em dezembro do ano passado, dessa  vez com um outro filho, Roberto, contei a história da bengala. Lembrou o desembargador que seu pai havia lhe mostrado a tal bengala, ele próprio lembra de tê-la visto alguma vez, mas não se recordava mais…
         Recentemente, a Academia de Medicina comemorou o centenário de Dr. Lauro Porto. Sensibilizada com a homenagem, a família decidiu oferecer a escrivaninha que pertenceu a ele ao Museu Médico. Insisti na bengala. Mas ninguém sabia onde ela estava. Uma pena! Logo a bengala, que Dr. Lauro guardara com tanto cuidado como um verdadeiro talismã, desde o remoto ano de 1947.
        Fiquei sabendo da história pelo próprio Dr. Lauro quando, em 1995, ao entrevistá-lo para a Revista da Sociedade Médica, relatou emocionado o episódio que o tornou depositário da bengala utilizada pelo médico Armando Domingues numa fase de sua vida. De todos os seus pertences, confessou, aquele era o mais precioso, como símbolo de uma  sólida amizade que existiu entre eles desde os tempos  da vetusta Faculdade de Medicina da Bahia, no Terreiro de Jesus. Como colegas de turma, os dois já se destacavam nas lutas estudantis. Lauro inclusive chegou a ser preso em 1932 após levantar, em rebelião, os estudantes de Medicina em apoio a Revolução Constitucionalista.
        Formados em 1935, os dois vieram pra Sergipe, com Armando clinicando em Itabaiana e Lauro em Aracaju, auxiliando mais diretamente o Dr. Augusto Leite. Em 1945, com a redemocratização do país propiciada pelo desfecho  da Segunda Guerra  que expurgou os regimes ditatoriais fascistas, Armando elegeu-se deputado estadual pelo Partido Comunista. De espirito irrequieto, tribuno vibrante, Armando destacou-se no parlamento sergipano, numa época em que o Partido Comunista atingiu o seu ápice de popularidade e representatividade política, chegando a eleger três vereadores, entre eles os irmãos Antonio e Carlos Garcia, em 1947.
       Em 1945 o PCB retornara à legalidade, obtendo seu registro eleitoral. Nas eleições presidenciais, realizadas em dezembro, o partido lançou a candidatura de Iedo Fiúza e obteve cerca de 10% do total de votos, tanto para o candidato apoiado como para a chapa do partido para a Assembleia Nacional Constituinte, elegendo 14 deputados federais e um senador, Luiz  Carlos Prestes.
         Com cerca de duzentos mil filiados em 1947, seu registro é novamente cancelado pelo TSE, no governo do marechal Eurico Gaspar Dutra e seus parlamentares são cassados. Os protestos contra a arbitrariedade se espalham pelo país e em Sergipe um comício é marcado para a Rua da Frente, em protesto  contra a cassação dos mandatos e em defesa da democracia e da paz, ameaçadas pela corrida armamentista dos Estados Unidos.
       O governador José Rollemberg Leite reage, não quer a manifestação  e manda  a tropa dissolver a concentração. Para despistar, os manifestantes mudam o ato para a Rua João Pessoa, em frente ao Cinema Rio Branco, único local que possuía iluminação adequada. A polícia de cavalaria investe contra o povo, que se defende como pode. Nessa hora, tudo pode representar uma arma de defesa, até mesmo uma simples bengala.
      No meio do tumulto, um tiro disparado pela polícia fere mortalmente o operário negro Anísio Dário e a partir daí se instala uma correria pra todos os lados. Lauro Porto recolhe a bengala perdida na peleja e a guarda consigo. Os comunistas são perseguidos, perdem seus empregos, Armando transfere-se para Salvador e abandona a militância em prol de uma bem sucedida trajetória médica. A bengala de Armando Domingues fica guardada por Lauro Porto por 67 anos.
          Na última sexta-feira, 2 de setembro, recebemos a bengala de Armando Domingues, localizada pela família de Lauro Porto no fundo de um armário e doada ao Museu Médico de Sergipe, como símbolo da resistência. Para os idealistas de 30 e 40, seus ideais convergiam para a libertação do povo. O socialismo era o regime das esperanças: contra a fome, o desemprego, a desigualdade social. O verdadeiro simbolismo da bengala não foi só representar o elo que uniu Lauro e Armando em amizade fraterna. A bengala simbolizou, de fato, a luta dos dois contra  a opressão e a tirania.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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