As arrumações da vida

Depois de tanto evitar, ele iniciou uma faxina hardcore em sua casa. Tirou poeira até do teto do apartamento, numa tentativa de organizar mentalmente também os sentimentos. Coisa banal, que todos nós fazemos regularmente, mas que ele estava evitando. Enquanto selecionava as roupas que não usava mais e também alguns pares de sapatos pra doação, se viu mais leve, mais tranquilo. O coração da gente tem umas conexões engraçadas onde o cérebro meio que se acalma quando organizamos algo, pelo menos a sensação que existe é assim.

Ao longo dos dias vamos acumulando pesos desnecessários, roupas que deveriam ser doadas e não são, amores que já deveriam ter acabado tempos atrás, mas que de alguma maneira continuam puxando nossas vidas para a roda contínua do pensar, pensar, pensar e não agir. O botão da liberdade está tão perto, tão acessível, mas ao mesmo tempo é tão difícil. Em meio ao turbilhão de pensamentos, e mudanças, ele percebeu que o guarda-roupa, que antes estava num quarto menor, e que precisava ser transferido para o seu próprio quarto, não caberia onde ele calculava caber. A vida é assim, tiramos algo dali e trazemos pra cá só pra constatarmos que não cabe mais, que deveríamos ter comprado algo menor, sentido algo mais de superficial ou primordialmente, pensarmos antes de tomar qualquer atitude.

Depois de medir milimetricamente os espaços, usando as palmas das mãos para isto, ele calculou cortar o objeto pela metade (mas não tinha como ser assim). Precisava adequar as coisas e teria que apertar os outros móveis do quarto para caber o trambolho. Na hora quis chorar. Como a vida pode ser tão difícil assim? Ele que tanto vem se desapegando de objetos, pessoas e sentimentos, se viu precisando adequar as coisas para comportar o guarda-roupa. Queria um abraço, mas nada. Ainda teria uma montanha de entulho para ajeitar e assim respirando fundo continuou.

Na vida, às vezes, precisamos trazer algo do passado, que não tinha tanta utilidade para assim darmos novas funções ao nosso presente. Enquanto se acostumava com a posição do guarda-roupa, ele viu uma possibilidade de paz se instalando em seu peito. Viu que se livraria de algumas caixas proteladas num canto do quarto há séculos. Perderia certo espaço ok, mas ganharia em não ver mais um monte de papelão velho. Agora só teria que organizar os objetos todos dentro do guarda-roupa. Morar em apartamento é assim, um móvel ganha outras funções, tudo em nome de não termos mais que lidar com aquelas tralhas. Igualzinho a vida.

Quando precisamos pensar, decidir algo ou apenas ter paz, a melhor coisa a se fazer é uma faxina em casa. Cada grão de poeira limpo representa um neurônio ajustado em nossa cabeça. Passa um pano limpo resolve onde passará férias; elimina peças íntimas velhas e já pensa em novas e novas conquistas amorosas (às vezes um homem precisa de cuecas novas para transar melhor. Isso não é só loucura de mulher); seleciona os livros que nunca mais lerá e já vem à cabeça as pessoas que serão presenteadas com estes; limpa o filtros do ar-condicionado e rever ali sua vida inteira, onde o que antes era empoeirado começa a ganhar liberdade pra respirar.

Enquanto ajustava as coisas na nova disposição do quarto, pensou no texto que teria que escrever naquela semana, mas a cabeça tomada de poeira e pensamentos em transição não teria condições para escrever uma linha. Queria uma inspiração, mas o antialérgico só lhe permitia, naquele instante, respirar melhor. Sem condições físicas, muito menos emocional, para nada, nem sair, nem ver amigos, nem tampouco escrever, pois enquanto a cabeça cobrava palavras, as mãos estavam carregando pesos.

Por alguns minutos, ele até cogitou dar tudo o que tem, em nome de não ter que arrumar aqueles trecos nunca mais na vida, daí sim poderia se dedicar a escrever melhor, pesquisar novas ideias, conhecer novas pessoas, mas daí ficou se perguntando até que ponto se livrar das coisas que construíram ele até li seria a solução? Uma coisa é se desfazer dos excessos, outra coisa é dar tudo o que tem pra não ter mais que lidar com nada. Percebeu ali que do mesmo modo que alguns pensamentos mais drásticos são importantes pra manter a vida rodando, arrumar as próprias coisas é uma maneira bonita de se estar vivo.

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