As primeiras notícias de João Melo, as tive em Boquim, por parte de minhas tias – Glorinha e Áurea Barreto – que moravam lá. Quando cheguei em Aracaju, em 1957, conheci o rádio sergipano, com Silva Lima, Santos Mendonça, Carlito Melo, Santos Santana, Raimundo Almeida, Cláudio Silva, Sodré Júnior, Nelson Souza, Cadmo Nascimento, José Eugênio de Jesus, Wellington Elias, nomes que magnetizavam os ouvintes com seus programas, dentre eles o Informativo Cinzano, o Calendário, o Carrossel da Alegria e Manhã Sertaneja. Cantavam, nos microfones sergipanos, o garoto Vilermando Orico, que morreu em São Luiz, no Maranhão, como piano bar do Hotel Quatro Rodas, aos 42 anos, Dão, o sambista, Seu Oscar, percussionista, ás do pandeiro, Luiz Ouro, voz de ouro, Antonio Teles, multimúsico, acompanhando de violão, de acordeom ou de piano, sempre uma bela voz boêmia, Alexandre Diniz, apenas um rapaz, Edildécio Andrade, hoje voz e violão do Trio Irakitan, Dalva Cavalcanti, Gravatinha, e depois Djalma, Lisboa, e outros novos. Nos auditórios das emissoras de rádio circulava entre os presentes uma memória musical dos tempos de Carnera, de João Melo, Zilda Porto, e muitos outros nomes que intermediavam as gerações de artistas em Aracaju. Deles, predominavam os violões de Argolo, João Moreira, a “orquestra” de João de Cula, João Nogueira, o pai, a voz de Morais, e de outros seresteiros, alguns dos quais homenageados por Murillo Mellins no seu livro genial sobre Aracaju dos anos 1940, como Bixestino, Pinduca, Miguel Alves, e muitos outros. O nome de João Melo aparecia destacado dos demais, pelo fato dele ter conquistado o estrelato no Rio de Janeiro, gravando discos, cantando. João Melo cantor era, para os que acompanhavam daqui o seu sucesso, mais importante do que João Melo compositor. Ou seja, havia dois João Melos, o que não era pouco numa terra onde raros artistas da música ganharam notoriedade. Aracaju tinha mandado para o Rio de Janeiro Luiz Americano (Rêgo), militar e filho de militar, compositor de clássicos da valsa e do choro, intérprete genial de clarineta e de saxofone, um dos ícones da MPB; Carvalhinho, o festejado autor de sucessos carnavalescos como Quem sabe, sabe e Madureira Chorou; Raimundo Santos, a voz que ainda hoje canta o hino do Clube Esportivo Sergipe, (cinqüenta anos de luta e de glória….) crooner da Orquestra do maestro Nelson Ferreira, do Recife, e que fazia nome gravando na Mocambo, de José Rosemblit. No entanto, João Melo era um ídolo, distante, mas com sua voz presente, próxima, como em Orós (Orós, Orós, precisa de todos nós…). Conheci João Melo no Rio de Janeiro, no estúdio da Philips (discos Sinter), mas já sabia algumas de suas músicas, decoradas. Velhos 78 rotações, e um LP. Cheguei certa feita, no estúdio e procurei por ele, fiz minha própria apresentação e levei comigo uma fita de rolo, gravada por José Orico, o pioneiro das gravações em Sergipe, pai de Vilermando Orico, com composições minhas, na voz de Frances Wanderley, uma bela moça que parecia ser, a um tempo, a fusão de Nara Leão e de Maria Betânia, duas artistas ligadas aos espetáculos do político Teatro de Arena, no Rio de Janeiro. Tinha algumas motivações para procurar João Melo. A primeira, porque ele era um ídolo, a segunda porque meus parceiros – Bonifácio Fortes e Ariosvaldo Figueiredo – eram bons poetas, terceiro porque a voz de Frances era encantadora, e por último porque Paulo Autran, Roberto de Cleto e outros artistas que passavam por Aracaju me mostravam a estrada para seguir em frente, o que não deixava de ser um incentivo. Visitei João Melo várias vezes e pude acompanhar, principalmente, seu trabalho como produtor e diretor artístico, no estúdio da avenida Rio Branco. Fiquei sabendo da influência de João Melo junto aos rapazes do MPB 4, de Niterói, onde o artista sergipano morava. Travei contato com a obra do compositor, músicas que ganharam o mundo, gravadas por Sérgio Mendes e outros intérpretes da nova música brasileira. E conheci, com especial carinho, as adaptações que João Melo fez, com Fernando Lobo, para histórias infantis: um primor de arte e de sensibilidade, que lastimavelmente ficou nos compactos duplos, uma coleção lúdica da maior importância. Conheci outros músicos sergipanos no Rio de Janeiro: Carlos Dantas, pianista do Restaurante Mesbla, figura doce de amigo, sempre lembrado das notas e acordes de Carícia, de Euler Bessa, talvez o bolero inédito mais famoso do Brasil. Ubirajara Quaranta, regente do Coral de Ouro Preto, pianista clássico, compositor de trilhas sonoras de filmes franceses, enquanto viveu em Paris, trabalhado e estudando. Terminei participando, no Teatro Carioca, da rua Senador Vergueiro, nas tardes de sábado, de um grupo de novos artistas, entre os quais Almir Blanc, conversei com Sérgio Cabral, Sérgio Bitencourt, mas não consegui nada de gravação. Mudei de rumo, fui revirar papéis, gravar as coisas do povo e pesquisar a cultura brasileira. João Melo, contudo, permaneceu na minha cabeça, como o seu Sergipinho (Meu amor ficou lá em Maroim/que é que estou fazendo aqui/longe dele assim/a vida não presta pra quem tá sozinho/eu vou voltar de qualquer jeito/pro meu Sergipinho). Era a saudade me puxando pelo braço, na paráfrase do genial Voltei, Recife, de Luiz Bandeira. A biografia de João Melo é um livro de aventuras e de venturas. Um cidadão que se tornou artista, um artista que jamais abdicou da luta pela cidadania. Militante político, desde os tempos de estudante no Ateneu, vitrine de insurgências, viveu o temor da resistência à ditadura e a agitação da luta contra o niponazifascismo. Seu périplo da Bahia para Sergipe, sua vida em Boquim, em Tobias Barreto (antes Campos), com a família, em Aracaju, em Salvador, novamente em Aracaju, novamente em Salvador, no Rio de Janeiro, em Aracaju, de novo no Rio, e de volta, em definitivo a barbosápolis, como ensina Wagner Ribeiro a tratar a capital que foi o sonho e as meninas dos olhos de Inácio Barbosa, há 150 anos. De fã passei a admirador e a amigo de João Melo, tendo a oportunidade de travar com ele um diálogo permanente, em torno da sua obra e do contexto da cultura sergipana. Ampliei meus contatos com Raimundo Melo, homem do comércio de passagens aéreas, sensível, religioso, solidário e também um admirador muito sincero do irmão. Não surpreende, portanto, que João e Raimundo dividam suas lembranças, evoquem fatos, destaquem pessoas, muitos dos quais já ficaram pelos caminhos, ou morreram distantes das glórias do mundo. João Ventura – cidadão de Aracaju é um documento rico de observações, fragmento da memória de um artista, contribuição esclarecedora de um recorte largo da cidade, com sua magia, sua vontade de sintonizar com o País. O depoimento pessoal de João Melo cumpre um itinerário que bem poderia ser um amplo capítulo da história do rádio em Sergipe, aumentado por uma experiência singular, que marca a sua vida, alongada pela alegria da arte, pela convivência feliz da família, pela certeza de que a terra, com flores e espinhos, é a sua terra de vivências, emoções, cumplicidades. E mais posso dizer, como por exemplo a imensa contribuição dada por João Melo à cultura sergipana, como âncora do Videoteca Aperipê Memória (vou ficar devendo, ainda, a biografia de Aperipê), programa de entrevistas que destacou dezenas de vultos de Sergipe, em todos os campos de atividades. A presença de João Melo na TV complementa sua biografia de artista, de múltiplas faces, sem esquecer da aparição, temporária, no programa global de Chico Anísio, coisas da maturidade. Doravante vale a palavra, pedaços soltos e alinhados de memórias, como roteiro às novas gerações, biografia autorizada e intimizada, como se fosse uma única e geral confidência, de como se pode vencer sem ser vencido pelas cadeias fortes do atraso e do subdesenvolvimento, com o antídoto da sua voz, do seu violão, da sua inspiração, da sua consciência de artista.
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