AS BOAS MULHERES DA CHINA
Não é preciso ver a sua mãe apanhando do seu pai. Sua filha sendo violentada até a morte, casamentos forçados, uma voz que vai morrendo exatamente quando encontra a saída e não tem mais jeito. A história da mulher no mundo é paradoxalmente comovente e por mais que se evolua, trágica. “As Boas Mulheres da China”(Companhia da Letras, 281 pgs, de Xinran) desenha um perfil catastrófico dessas mulheres que viveram sob o regime comunista. Mas ao mesmo tempo que relata a história dessas mulheres, incrivelmente as liberta, dando-lhes feições múltiplas, de uma riqueza singular e única, de uma dor inacreditavelmente suportável, com relatos onde nós, somos moscas pisadas, diante das verdades de cada vida descrita por Xinran.
Xinran é uma jornalista que apresentava um programa de rádio intitulado “Palavras na Brisa Noturna”. Neste programa ela colheu relatos, que são verídicos , durante mais de oito anos. Histórias que se misturam ao totalitarismo militar da época, onde manifestações de afeto eram negadas, levando estas mulheres a estupros, prisões, levando muitas ao desespero, à loucura e à morte. Xinran, a autora, não é só relatora dos fatos, é personagem viva. Separada dos pais na infância, foi também vítima de humilhações e censura. Mesmo num assunto tão denso e assumidamente violento, as palavras na brisa noturna são uma contribuição inexorável ao desespero vivido pelas mulheres relatadas ali. É um vagar no escuro de nós mesmos, sabedores da miséria humana, da crueza das ações dos regimes, da incerteza , do terrorista que somos cada um de nós ao levantarmos a mão, buzinarmos em frente a hospitais, negarmos a pensão aos próprios filhos. Sabedora das desgraças e mazelas humanas, Xinran nos leva a um campo de concentração tão semelhante ao de Hitler ou à política de Bush imposta aos países árabes – é um soco na boca do estômago, paralisante, onde o leitor não será mais nunca o mesmo – nem que queira.
Um dos ouvintes do programa de Xinran, escreveu: “Ouço todos os seus programas. Todo mundo na nossa aldeia gosta deles. Mas não estou escrevendo para lhe dizer o quanto o seu programa é bom; estou escrevendo para lhe contar um segredo. Não é bem um segredo, porque todo mundo na aldeia sabe. Há um homem velho e aleijado aqui, de sessenta anos, que comprou uma esposa recentemente. Ela parece muito nova. Acho que foi raptada. Acontece muito disso por aqui. Mas muitas das garotas conseguem fugir mais tarde. O velho está com medo de que a mulher fuja, por isso amarrou-a com um grossa corrente de ferro. A cintura dela está em carne viva por causa do peso da corrente – o sangue escoa pela roupa. Acho que ela vai morrer. Salve-a, por favor. Não mencione esta carta no rádio de modo algum. Se os moradores da aldeia descobrirem, expulsam a minha família daqui. Que o seu programa fique cada vez melhor.” Para Xinran esta era a carta mais aflitiva que ela recebeu desde que começara a apresentar o programa de rádio. Xinran cita que o autor e filósofo chinês Lu Xun disse certa vez que “a primeira pessoa que experimentou um caranguejo deve Ter provado uma aranha também, mas percebeu que não era boa para comer.”
Muitas das perguntas que faziam a Xinran eram sobre sexualidade. Uma queria saber por que o seu coração acelerava quando ela esbarrava por acaso num homem no ônibus, Outra perguntava porque começava a suar quando um homem lhe tocava a mão. Toda essa necessidade dos porquês, era devida a proibição de qualquer contato físico entre um homem e uma mulher, que não fossem casados, levando-os muitas vezes, à condenação pública e à prisão.
Afora as gravidades relatadas nas centenas de cartas que acumulavam sobre sua mesa, os relatos e histórias desses rostos e vidas, quase anônimos, são mais devastadores.
Numa das cartas uma chama a atenção, se é que alguma pode chamar mais atenção que a outra, dada a riqueza e dor com que são descritas… Uma menina, por exemplo, que descobriu o afeto, não por mãos humanas, mas pelas patas de uma mosca. Ao lado da boca da mosca, desenhada na carta enviada, um frase: “sem a primavera, as flores não podem desabrochar; sem a dona, isto não pode ser aberto.” E logo em seguida a carta da ouvinte, que faço questão de repoduzir na íntegra: “Querida Yulong, Você vai bem? Desculpe por não Ter escrito antes. Não há motivo para isso, é só que tenho muito a dizer e não sei por onde começar. Por favor, me desculpe. Você me fez duas perguntas na sua carta: “por que você não quer ver o seu pai? E “o que a fez pensar em desenhar uma mosca e por que a fez tão bonita?” Querida Yulong, essas duas perguntas são muito dolorosas para mim, mas vou tentar responder. Qual é a menina que não ama seu pai? Um pai é uma grande árvore abrigando a família. As vigas que sustentam uma casa, o guardião de sua mulher e de seus filhos. Mas não amo o meu pai – eu o odeio.
Na véspera do ano novo do ano em que fiz onze anos, levantei bem cedo e, inexplicavelmente, estava sangrando. Fiquei tão assustada que me pus a chorar. A minha mãe, que veio Ter comigo quando me ouviu, disse: “Hongxue, você cresceu.” Ninguém, nem mesmo ela, tinha me falado sobre coisas de mulheres antes(…) Saí correndo pelo quintal, pulando e dançando durante três horas. Até esqueci o almoço. Um dia, em fevereiro, estava nevando muito e mamãe tinha saído para visitar uma vizinha. Meu pai tinha vindo da base militar, para uma das suas raras visitas. Ele me disse “sua mãe disse que você cresceu. Vamos, tire a roupa para o papai ver se é verdade.”(…) “Esses mamilozinhos já incharam? É daqui que o sangue vem? Esses lábios querem beijar o papai? É gostoso quando o papai passa a mão aqui, assim?”(…) Por que foi que desenhei uma mosca e por que a fiz tão bonita? Porque anseio por uma mãe e um pai de verdade; uma família de verdade, onde eu possa ser uma criança e chorar nos braços do meu pai…”
Há outras histórias em “As boas mulheres da China”. Outros campos minados. A mulher que esperou quarenta e cinco anos, a filha do general, a mulher cujo pai não a reconhece, as mulheres da colina dos gritos, a mulher cujo casamento foi arranjado pela Revolução, a mulher que amava as mulheres e ainda as mães que sofreram um terremoto e uma que cantava para que a mãe ouvisse e foi perdendo a voz, perdendo alguma coisa, essas coisas que não acreditamos existir de tão ácidas e desumanas – essas coisas que vamos perdendo e que vão ficando coladas às nossas caras, grudadas, roendo-nos por dentro, ainda que uma mosca venha a nos acariciar.
Ps- Na próxima coluna comento “O Enterro Celestial”, novo livro de Xinran(Companhia das Letras, 160 págs). O livro é um soco na boca do estômago. Fala de Wen, uma mulher que vai ao Tibet atrás do seu marido, que acabara de perder. 2006 de bênçãos para todos!