Era bom saber que às cinco horas ela dançava. Não como a bailarina que já fora, era uma mulher em casa, cansada do trabalho, que esquentava a água para o café e dançava ao som da música que tocava no rádio. Era bom saber que ela ainda podia dançar para as coisas simples do dia. Da vida. De repente, a poesia – e também, de certa forma, o amor – se tornava outra vez possível, porque havia a alegria de uma dança não-ensaiada, acontecendo descalça na cozinha de um apartamento. E talvez até a morte desistisse de se aproximar naquelas horas. Um amuleto. Tentou encontrar uma ligação filológica entre amor e amuleto, mas por fim seu pensamento se perdeu de novo na beleza algo estúpida daquela dança.
O vestido de algodão um pouco folgado demais para seu corpo esguio se movia em um ritmo próprio, mais leve e lento do que a mulher que o vestia. Junto com uma réstia de luz solar que iluminava um pedaço florido, ele (o vestido) escrevia um pouco de poesia na tarde bucólica. Sentado à mesa com sua caneca à espera de café, ele (o homem) sentia uma poesia a um só tempo erótica e infantil. Porque o corpo dela (a mulher) tinha uma cadência sensual e feminina e os movimentos suavemente deixavam ver pedaços de sua pele sob a roupa, embora a dança em si e o ato mesmo de dançar às cinco horas enquanto fazia café tinham uma alegria só possível para as crianças.
– Tá olhando o que? – ela interceptou um olhar e sorriu envergonhada, enquanto ajeitava uma mecha do cabelo que se soltara do coque mal feito.
Ele não tinha uma resposta possível. Não era, afinal, explicável todo o universo de coisas e sentimentos que ele via na saia do vestido florido que se balança com uma dancinha caseira. Era talvez amor o que ele olhava, ou só pacificação. Era também uma espécie de desejo e calma satisfação. Era bom estar vivo naquele momento e saber que ela dançava.
– Nada não, só olhando você – porque não era de todo mentira se respondesse só isso.
Ela riu divertida, deu uma pirueta como se estivesse novamente num palco, sob os holofotes, e quase se esbarrou na mesa onde ele estava sentado. Os dois riram juntos do improviso daquele pequeno show caseiro e da alegria mesmo de estarem ali, num momento tão banal. Ela esticou o braço e alcançou o pó do café. E tudo ao redor se aquietou, até a música pareceu mais branda, quando ela pisou os dois pés no chão e interrompeu a dança para coar o café sem fazer bagunça. Tinha sempre aquela postura elegante de bailarina. Às vezes tentava não ser assim, às vezes tentava não parecer tão rígida, porque achava que aquela rigidez reta da coluna lhe trazia uma espécie de rigidez reta também para a vida.
O cheiro do café sendo coado às cinco horas da tarde invadiu toda a casa e trouxe uma nova alegria cheia de memórias para os dois. Ela se alegrou de ainda lembrar do cheiro da cozinha no final da tarde da casa da sua infância, sua mãe ao pé da pia, coando café, com o pé esquerdo apoiado no chão e o direito descansando sobre o joelho esquerdo. Também mantinha uma postura reta, embora o fato de descansar um dos pés sobre a outra perna lhe fizesse parecer meio desengonçada. Tentou fazer a mesma coisa, porque queria que aquela fosse sua hora mais natural. E descansou o pé e a memória.
Tocava um jazz animado no rádio, e todo seu corpo subitamente vibrou pela dança. Queria sair rodopiando pela cozinha, pela tarde fresca envolta no aroma do café, sem a pressão de estar novamente sobre um palco. Terminou de coar o café e deixou que seu corpo se movesse um pouco, enquanto tentava conter toda a força da onda musical que lhe invadia. Sempre queria mais, no entanto, aquela tarde pedia gestos contidos de alegria e amor. Levou a garrafa térmica até ele, num bailado sensual e divertido, sorria alegre, e ele sorria de volta, também sendo feliz.
– Às vezes eu até sinto saudades, sabe? – soltou aquela frase tentando emular serenidade, como se aquela pudesse ser uma conversa amena.
– De que? – ele sabia, claro, a resposta, mas não a queria. Pelo menos não agora, não naquela tarde, não com o café fumegando na sua caneca e o sol já começando a baixar lá fora. Ela deu um gole no café antes de responder, porque sabia que não deveria ter entrado naquele campo minado de mágoas.
– Do palco… Das luzes… Não sei, acho que do público também… – calou-se com um pouco de vergonha dessas saudades e sem conseguir defini-las adequadamente para fora de si. Elas doíam no peito às vezes, ou ardiam os olhos de lágrima, contudo, no fundo as sabia irrealizáveis.
Ele deu um gole no café ainda muito quente e sorriu condescendente sem conseguir elaborar nenhuma frase. Um buraco negro se abria em si quando aquele conversa recomeçava. Abaixou os olhos para a caneca, porque não queria sofrer abertamente às cinco horas de uma tarde que começara tão bem. Ele tinha dó de si e dela, tinha medo e uma dor que é sentir a dor de quem se ama, algum cansaço e, sobretudo, a insegurança de estar vivo e amar.
Naquela tarde, às cinco horas, amar era essencialmente aceitar a insegurança de tudo. Ela olhava pela janela o sol cair e sentia uma vontade de não-sei-o-quê a arder no peito. Estava feliz e amava, e ainda assim não conseguia se livrar de um buraco qualquer no peito, um desejo de mais alguma coisa. Apertou a caneca de café com as duas mãos e, num profundo suspiro, tomou um grande gole. Quando depositou a caneca de volta na mesa, uma lágrima escorreu súbita e irrefreável. Ele notou angustiado e tomou sua mão com carinho. Olhou-a aceitando tudo o que pudesse vir dali por diante e sorriu cúmplice.