Mais uma vez o tema dos auxílios (auxílio-moradia, auxílio-saúde, auxílio-alimentação) pago a agentes públicos já muito bem remunerados em forma de subsídios volta a ocupar a pauta da imprensa local e nacional.
Com efeito, o tema voltou a ter destaque a partir da notícia de cobrança de recebimento dos valores retroativos de auxílio-moradia no âmbito do Tribunal de Contas do Estado de Sergipe, desencadeando a revelação de que membros do Ministério Público e magistrados do Estado já teriam recebido esses valores retroativos, o que de resto pode ser constatado mediante simples consulta aos respectivos portais da transparência.
Para além do total descompasso com a realidade de crise e de escassez de recursos, tais pagamentos retroativos desnudam grandes faces da injustiça social brasileira: 1 – despossuídos ou hipossuficientes, para fazer valer os seus direitos, esperam anos e anos de tramitação de seus pleitos em demorados processos judiciais, muitas vezes tendo de enfrentar, após o trânsito em julgado das sentenças, o ingrato mecanismo do precatório judicial; determinados agentes públicos conseguem receber o que entendem ser valores devidos na própria via administrativa; 2 – esses importantíssimos agentes públicos, essenciais ao Estado Democrático de Direito, são suficientemente remunerados para aquisição de moradias dignas, custeio de suas alimentações e despesas com saúde (além do acesso ao sistema público de saúde, gratuito para todos) enquanto outros tantos brasileiros, trabalhadores ou não, que não dispõem de rendimentos mensais tão elevados, não recebem esse tipo de auxílio estatal para subsidiar as suas despesas com habitação, saúde e alimentação.
Demais disso, o pagamento de tais auxílios se revela medida que viola a Constituição da República, a despeito de sua regulamentação nacional por ato do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público.
O que já era uma mal disfarçada forma de obter um reajuste em suas remunerações sem que isso fosse feito pela via adequada ficou escancarado com a constrangedora entrevista concedida no final do ano de 2014 pelo então Desembargador José Roberto Nalini, Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na qual, questionado, afirmou expressamente que “esse auxílio-moradia na verdade disfarça um aumento do subsídio que está defasado há muito tempo”, “o auxílio-moradia foi um disfarce para aumentar um pouquinho” (confira aqui o vídeo, no qual além de tudo defende a necessidade desse “reajuste disfarçado” porque juízes “parecem ser bem remunerados mas não são”, porque “sofrem alto desconto do imposto de renda”, “têm de pagar plano de saúde”, “quando têm de comprar terno não dá toda hora para ir a Miami”, “não dá pra comprar um sapato razoável, uma camisa decente, carro”).
Na raiz da decisão monocrática proferida pelo Ministro do STF Luiz Fux (Medida Cautelar da Ação Originária 1.773-DF), que deu ensejo à edição da Resolução nº 199 do Conselho Nacional de Justiça (resolução que regulamenta a concessão de auxílio-moradia aos juízes), está a fundamentação de que essa “ajuda de custo” possui respaldo na LOMAN (Lei Orgânica da Magistratura Nacional – Lei Complementar nº 35/79) e também na Lei Orgânica do Ministério Público da União (Lei Complementar nº 75/1993).
Ocorre que essas duas leis são anteriores ao novo regime constitucional impositivo da sistemática de remuneração de diversos agentes públicos, dentre eles magistrados e membros do Ministério Público, em forma de subsídio (parcela única), instituído pela emenda constitucional n° 19/1998; suas incompatibilidades com a Constituição, portanto, são patentes, tudo como já foi aqui comentado, na coluna publicada em 25/01/2012, a propósito da instituição desse benefício aos juízes e membros do Ministério Público do Estado de Sergipe.
A Constituição Federal, desde a aprovação da emenda constitucional n° 19/98 (portanto, após a elaboração da Lei Orgânica da Magistratura Nacional – LOMAN – Lei Complementar n° 35/1979 e da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público – Lei n° 8.625/1993), determina que magistrados e membros do Ministério Público, dentre outros agentes públicos, a exemplo de Ministros do Tribunal de Contas da União e Conselheiros dos Tribunais de Contas dos Estados, somente podem ser remunerados em parcela única (regime de subsídios).
Confira-se o § 4° do Art. 39, acrescentado pela já mencionada EC n° 19/98:
§ 4º O membro de Poder, o detentor de mandato eletivo, os Ministros de Estado e os Secretários Estaduais e Municipais serão remunerados exclusivamente por subsídio fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória, obedecido, em qualquer caso, o disposto no art. 37, X e XI. (grifou-se).
Os magistrados são membros de poder, e a eles se equiparam os membros dos Tribunais de Contas (Ministros e Conselheiros) (Art. 73, § 3º). E os membros do Ministério Público também se submetem à obrigatoriedade do regime remuneratório em parcela única (subsídios) por força do que estabelece o Art. 128, § 5°, inciso I, alínea “c” (norma que assegura a garantia de irredutibilidade de subsídio, fixado na forma do § 4° do Art. 39).
Mais evidente não pode ser, portanto, a inconstitucionalidade de qualquer previsão legislativa assecuratória do pagamento de verbas como “auxílio-moradia”, “auxílio-alimentação”, “auxílio-saúde” para juízes, membros do Ministério Público e membros dos Tribunais de Contas, quando interpretada como verba de caráter puramente remuneratório.
Como bem ressalta o constitucionalista CLÁUDIO PEREIRA DE SOUZA NETO, em parecer lavrado à época em que era presidente da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil:
A Constituição Federal não permite, portanto, o recebimento, pelos "membros de poder", de outras parcelas remuneratórias além do subsídio, fixado em parcela única. De acordo com o artigo 128, § 5º, da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, esta é também uma garantia dos membros do Ministério Público.
A Emenda Constitucional nº 19, quanto a esse tópico, é medida moralizadora, evitando que agentes políticos recebam uma variedade de gratificações. O subsidio, fixado em parcela única, dignifica a remuneração, conferindo-lhe clareza e seriedade.
Não é difícil perceber: sendo os subsídios fixados em parcela única, qualquer reajuste no valor da retribuição pecuniária que seja concedido aos juízes e membros do Ministério Público pelo exercício de suas relevantes e indispensáveis atribuições deverá ser objeto de lei (uma única lei para cada carreira) que efetue esse reajustamento. Daí a maior facilidade de acompanhamento, pela sociedade, da atividade legislativa para esse fim eventualmente destinada. Daí a maior transparência, do que decorre maior efetividade do controle social.
Resta analisar o tema, então, na perspectiva do suposto caráter indenizatório (ressarcimento de despesas) do auxílio-moradia.
De fato, o regime remuneratório de agentes públicos em parcela única (subsídios) não impede que recebam, conforme previsão legal, verbas referentes ao ressarcimento de despesas que eventualmente precisem realizar por necessidade do serviço (a exemplo de ajuda de custo para despesas com transporte e mudança).
Ocorre que, no caso de magistrados e membros do Ministério Público, esse caráter indenizatório do auxílio-moradia fica totalmente descaracterizado diante da obrigação constitucional de os juízes e membros do Ministério Público residirem na comarca em que atuam.
Com efeito, a Constituição Federal dispõe, no Art. 93, inciso VII, que “o juiz titular residirá na respectiva comarca, salvo autorização do tribunal” (grifou-se), disposição que se aplica aos membros do Ministério Público tendo em vista a previsão do Art. 129, § 4º (“aplica-se ao Ministério Público, no que couber, o disposto no Art. 93”).
Bem frisou CLÁUDIO PEREIRA DE SOUZA NETO: “A exigência de que o membro do Ministério Público resida na comarca impede que, em regra, se confira ao auxílio-moradia natureza indenizatória. Os procuradores e promotores de justiça devem custear sua própria moradia com o valor que recebem a título de subsidio”.
Aliás, o Ministro do STF, GILMAR MENDES, já lecionou, em voto proferido na ADI n° 3783:
O auxílio-moradia constitui vantagem remuneratória de caráter indenizatório. Portanto, é devido apenas em virtude da prestação das atividades institucionais em local distinto, enquanto estas durarem. Como decorre da própria lógica do sistema remuneratório, o auxílio moradia visa ressarcir os custos e reparar os danos porventura causados pelo deslocamento do servidor público para outros locais que não o de sua residência habitual. Dessa forma, parece lógico que tal vantagem seja deferida apenas àqueles servidores em plena atividade, que se encontrem nessa específica situação, e apenas enquanto ela durar, não se incorporando de forma perpétua aos vencimentos funcionais do servidor.
Juízes, Membros do Ministério Público e membros dos Tribunais de Contas exercem funções essenciais ao Estado Democrático de Direito. A sua independência funcional – e os meios que a assegurem – constituem garantia da sociedade, que necessita de um Ministério Público atuante e proativo, bem como de um Poder Judiciário livre e acessível, como manifestações essenciais do controle do poder estatal e dos abusos dos agentes públicos, em especial os agentes políticos, como também de preservação e efetivação de seus direitos fundamentais.
Exatamente por esse motivo não devem comprometer a sua alta credibilidade social com uma mal disfarçada – e agora explicitamente assumida, pelo Presidente do TJ/SP – tentativa de reajuste do valor de seus subsídios pela via inconstitucional do “auxílio-moradia” (e ainda de outros auxílios como saúde e alimentação).
Se juízes e membros do Ministério Público eventualmente estiverem com suas remunerações fixadas em valores defasados, há anos sem reajuste, que sejam então reajustados os seus subsídios. Para isso, há necessidade de convencimento sincero da sociedade, capaz de impulsionar força política para a aprovação de lei que, desde o valor do subsídio dos Ministros do STF (teto de remuneração dos agentes públicos), recomponha o valor dos subsídios dos magistrados e membros do Ministério Público.