Besteirol por besteirol…

Eis que leio no Jornal da Cidade desta sexta-feira em matéria da folha A5: “Honoris Causa – Lula recusa homenagem da UFRS.” Notícias vindas de Rio Grande (RS) davam conta que o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva fora agraciado com o título de “doutor honoris causa” pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

 

Para os que não conhecem o título “honoris causa”, se refere a uma homenagem tomada de empréstimo de uma locução latina que pressupõe o reconhecimento de uma muito honrada atuação, geralmente reconhecida por instituições de ensino superior. Trata-se, inclusive, de uma honraria datada do início da universidade como instituição nascida na idade média.

 

Entrega do título de Doutor Honoris Causa na Universidade de Valladolid na Espanha.

No caso do Brasil, e em particular das nossas Universidades Federais, tal título de honra e louvor pode ser concedido tanto ao Professor quanto ao Doutor, ambos, igualmente em “Honoris Causa”.

 

No primeiro caso, na nossa Universidade Federal de Sergipe, por exemplo, o título de “Professor Honoris Causa” é concedido “a professores e cientistas ilustres que, embora não pertencendo à Universidade, lhe tenha prestado relevantes serviços” (Art. 139, alínea b do Regimento Geral da UFS). Já o título de “Doutor Honoris Causa”, análogo ao concedido ao nosso Presidente Lula, este só é dado “a personalidades que se distinguiram, seja pelo saber, seja pela atuação em prol da Filosofia, das Artes e das Letras, seja pelo melhor entendimento entre os povos ou em defesa dos direitos humanos” (Art.139, alínea c do RG-UFS). Pelo menos era assim que rezava o RG-UFS quando eu ali estava e o aprovei enquanto membro do Conselho Universitário (CONSU).

 

Não irei entrar no mérito da decisão da UFRS, mesmo porque não vejo como negar qualquer valor ao nosso presidente, mesmo em relação ao título conferido.

 

Neste particular, ao rejeitar a honraria, “achando-a muito chique”, Lula mais uma vez está dando uma aula sobeja de bem conhecer os homens que dele se aproximam. Uma coisa muito difícil, aliás; saber quem nos é franco e verdadeiro no elogio ou na crítica enquanto permanecemos equilibrados nos pedestais da vida.

 

Mesmo porque esta questão de homenagem a quem está em pleno apogeu em poder e mando é uma coisa complicada, inclusive porque não faltam áulicos para imaginá-las.

Calígula acreditou que era mesmo divino.

 

O próprio Suetônio, aquele que discorreu sobre os ápices e baixios dos Doze Césares, fala que Otávio Augusto César e depois o seu sucessor Tibério não se sentiam muito bem quando o chamavam de Divino. Porque Augusto que se sentia frágil como nós todos, desconfiou da tal divindade reconhecida, com pergaminho, manta púrpura, e coroa, a ela rejeitando várias vezes, até que, por imposição de ovação popular irrefletida, foi instado a aceita-la em pleno contragosto.

 

Por gosto pouco entendido, os romanos de ontem como os de hoje adoram divinizar os homens encastoados no poder. E Augusto sabia por demais que no cerne de toda homenagem aos poderosos, muitas vezes há um interesse fugidio inerente à fraqueza e a esperteza dos humanos.

 

Assim, se Augusto e Tibério César não se viram tão divinos, Calígula, o terceiro César, tomou gosto com essa estória de ser deus, que ficou na história até por reduzir o Senado romano à manjedoura de seu cavalo Incitatus.

 

Nada que incite o nosso presidente Lula que continua dando um show, até mesmo gracejando por cima deste besteirol. “Chique né?” Diz o presidente.  “É muito chique, mas eu disse pra ele (o reitor da UFRS) que eu tomei uma atitude já há algum tempo: agradeço de coração e, se for mantido, virei receber depois que deixar a Presidência da República. Enquanto presidente, eu não quero receber nada, porque depois que eu deixar de ser presidente eles não queiram mais me dar o título? Eu quero dar essa liberdade para as pessoas agirem livremente.”

 

E continua a matéria do JC: ‘sem querer ou querendo, o presidente alfinetou o seu antecessor; “Eu não acho correto um Presidente da República ficar recebendo, no exercício do mandato um título como esse…”’

 

Como eu já disse a concessão de títulos “honoris causa” é coisa antiga. Data do início da Universidade na Idade Média. O primeiro agraciado com o título pela Universidade de Oxford, por exemplo, foi o Bispo de Salisbury, Lionel Woodville, em 1470. O sábio Benjamin Franklin, aquele do para-raios, o responsável pela denominação das cargas elétricas, positivas e negativas, e que é considerado um dos pais fundadores da nação americana, foi outorgado também como doutor “honoris causa” por Oxford em 1762.

 

De la par cá, e variando de Universidade o noticiário fartamente conta estórias de concessões controversas.

 

A Universidade de Oxford recusou em 1985 o título de Doutor Honoris Causa a Margaret Thatcher porque a dama de ferro cortara verbas para a educação pública. 

A própria Universidade de Oxford concede previamente tal título a todo ex-aluno que se torne Primeiro Ministro inglês. Isto não impediu, porém, de recusar, em 1985, a concessão a Margaret Thatcher em reprimenda aos seus cortes orçamentários destinados ao ensino superior.

 

Ou seja, o título é dado para agradar a uns e dar canelada em outros. Tudo ao sabor das conveniências e do besteirol dos homens.

 

Diga-se de passagem, que nas Universidades espanholas o cerimonial de entrega do título de Doutor Honoris Causa se compõe de um cerimonial de docência e a sabedoria, por meio de imposição de um “birrete”, espécie de barrete, gorro ou capelo, um anel, luvas brancas e um livro.

 

O birrete é não só para o agraciado se destacar em meio aos circunstantes, como também para servi-lo como um capacete de Minerva, preparando-o para as grandes contendas.

 

Com a imposição do anel, consuma-se um casamento do homenageado com a Sabedoria como esposa; o agraciado deve usar o anel perpetuamente, jamais se divorciando dele.

 

Em sequência as luvas são brancas, como símbolo de pureza, devendo ser assim conservadas as mãos do reverenciado em seu labor e escrita, como honra singular e valia. E o livro aberto a afim de que nele sejam descobertos os segredos da ciência, para serem guardados ou divulgados segundo a sua soberana consciência.

 

Cerimonialistas e ritualistas geralmente preparam uma série de reverências e formalidades nem sempre bem encenadas na solenidade, afinal esta parte de cena está a exigir ensaios e tendências para a dramaturgia, nem sempre acontecidas a quem confere e recebe a homenagem, sem falar em coisas engraçadas como o capuz mal dimensionado para a cabeça, o anel apertado, as luvas trocadas, tudo isso entremeado com a timidez ou desenvoltura por parte dos atores.

Sagração de Napoleão Bonaparte se coroando Imperador dos franceses. Óleo de Jacques Louis-David – Museu do Louvre

 

Neste particular de desenvolturas e estranhezas seja destacada a coroação de Napoleão como imperador. Depois de se fazer um general vitorioso, Napoleão Bonaparte resolvera se tornar um verdadeiro César.

 

Primeiro aceitara o título de Cônsul Vitalício do povo francês, mas depois encantado sobremodo com o seu reflexo no espelho, resolveu se fazer Imperador.

 

Ora a coroação de um imperador, segundo os ritualistas de todas as épocas, se fazia mediante o “autoritas” do Papa. Assim o Papa Pio VII fora trazido debaixo de baioneta e sabre à catedral de Notre Dame para coroar o novo imperador.

 

O que se viu na cerimônia foi uma constatação inequívoca da perda do poder papal em um dos momentos mais notáveis da História. Napoleão I retirou a coroa das mãos do Papa Pio VII, que viajara especialmente para a cerimônia, e ele mesmo se coroou, numa postura para deixar claro que não toleraria autoridade alguma superior à dele. Logo após também coroou sua esposa, a imperatriz Josefina.

 

E o Papa que viera de Roma para o besteirol de uma coroação indesejada, no cúmulo da encenação, fora vitima de um engodo, um embuste, sendo mantido prisioneiro em Fontainebleau, como hóspede do “ogro da Córsega”, como assim Napoleão era chamado por seus desafetos.

 

Quanto ao Papa, só dez anos depois Pio VII, voltaria para casa. Neste tempo o imperador já começava a perder todos os títulos que recebera em vida, Em glória recebe-se tudo. Na inglória retira-se até o que não deveria jamais, por suprema covardia e besteirol dos homens menores.

 

Há quem diga que o Governador da Ilha de Santa Helena, o inglês Hudson Lowe, o carcereiro impiedoso do imperador, que não só o envenenou como até lhe amputou o pênis, já cadáver, para exibi-lo em sua coleção particular. Coisa do besteirol também dos homens, ou sua maneira de aparecer perante os outros homens.

 

O túmulo de Napoleão nos Inválidos- Paris.

Nada que impedisse Napoleão de retornar em sua grandeza na História, com suas cinzas voltando a Paris, em grande cortejo popular, e hoje repousando no monumento dos Inválidos, onde todos que ali chegam observam o seu túmulo, sempre se curvando, ora para cima, ora para baixo, jamais com gracejos de indiferente reverência ou de mal-excedente insolência.

 

Mas, deixemos esta excedente insolência de amputar pênis de desafetos e tantas e quantas tolices do besteirol humano, aí incluídos o “bilro”, o título mal concedido e outras tolices, do noticiário ou do nosso caminhar diário.

 

Eis que em largando o jornal, encontrei pelas bandas do mercado, um carro com um cartaz dizendo: “Mulher feia é como morcego. Só sai de noite.” Que coisa feia com as mulheres! Que coisa banal!  E há mulher feia? E existe hoje mulher feia depois desta moda de alisamento progressivo com chapinha inteligente?!

 

E mais: Por acaso há mulher feia pra ser comparada com morcego, aquele bicho cego sombrio, parente de vampiro? Há este besteirol dos homens…, inclusive com Vinicius de Morais, já sem muito apetite, mas ofendendo também: “Que me perdoem as feias, mas beleza é fundamental.” E o pior é que o mulherio até gostou deste besteirol; sofisticado, é verdade, mas bastante debochado também.

 

E em meio a tal parecer indelicado, entre tanto besteirol, ouço no rádio do carro um ministro de Deus, conclamando as almas trôpegas da vida: “Quem tem muitos amigos, fracassa! Não tenha muitos amigos! Amigo da gente tem que ser como um dente, nunca falha, sempre morde a língua quando tem raiva da gente”.

 

E eu achei interessante o filosofar do speaker espicaçando o sentimento da amizade, cobrando uma santidade inconsútil de sentimentos e fidelidades eternas.  

Desmodus rotundus – morcego hematófago transmissor da raiva. Foto do Governo de Rondônia.

 

E continuava ele exegeticamente apocalíptico : “Você sabe quantos amigos devemos ter? Doze! Só devemos ter doze amigos!”

 

Por que doze? Eis minha curiosidade presa ao programa bobo de rádio. Por que este cabalístico doze? Por que este tão apocalíptico doze? E eu me perguntava, ligando mais alto o som, pensando na lei das doze tabuas, nas doze tribos de Israel, nas doze trombetadas de Josué, na dúzia de ovos, que se vende assim, nas doze pragas da Índia, na própria dúzia e seus seis divisores, nos doze césares, nas dúzias de conceitos filosóficos, nos meus doze leitores, em fim, eu não sabia o porquê de só se ter doze amigos.

 

E a resposta era tão fácil, vinda irretorquível e definitiva: “Nós só devemos ter doze amigos, porque Jesus Cristo só teve 12 amigos.”

Besteirol bonito de Cindy Crawford como uma mulher morcego reinando dia e noite na internet.

E eu não sabia que Jesus só tivera doze amigos. O que eu sabia é que uma dúzia era o número de apóstolos, com nomes conhecidos e explicitados, e, assim mesmo, um o traiu.

 

Mas o locutor continuava definitivo: “o amigo sempre trai!”

 

E prosseguia a aula radiofônica. “E quantos amigos do peito mesmo nós temos? Amigos que entram na nossa casa, sem pedir licença, que abrem a geladeira, etc, etc? Só três! Jesus tinha doze amigos, mas só três o eram do peito, pau pra toda obra. Na hora de viajar, do vamos ver, de fazer as visitas e passear, Jesus só andava com três: Pedro, Tiago e João, visitando Jairo, Lázaro, Marta, Maria Madalena, Nicodemos e Arimatéia”, que pelo jeito não eram tão bons amigos de Jesus.

Jesus entre os doze apóstolos, só tinha três amigos? E os que morreram por sua fé ao longo de milênios?

 

E aí eu me lembrei de Lula “condenado agora ao fracasso” pelo locutor exegeta, só porque ficou tão “chique” como doutor “honoris causa”, por repleno de amigos, quando deveria ter só três ou no máximo doze. (Ai meu Deus, quem seriam estes doze querubins ao redor de Lula?).

 

A não os ter, como anjinhos barrocos ao nosso derredor, melhor os ter como dente mordendo a língua doce que o lambe.

 

E eu que bato palmas pra Lula, até por sua língua em recusar com gracejo, o título e o halo anexo de hipocrisia, ao ver depois um locutor descabeçando tolos pelo rádio, e um caboclo sem vergonha debochando e cuspindo ao léu, comparando em escarcéu a mulher de outros agrados, como a um morcego dos seus desagrados, desliguei o rádio e o carro.

 

Besteirol por besteirol, fico muito mais feliz assistindo o programa político de vereador na TV; cada um com os seus quinze segundos de glória na telinha, onde todo mundo se vê e se contempla, nesta humanidade nossa de todos os dias.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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