O fim do mundo é logo ali, depois da curva da estrada. Mas, a bem da verdade, ele não existe por si, é só uma lembrança brumosa de um sonho da infância. Embora de fato se localize na Terra, com cartografia, marcação em GPS, mitologia própria e até um documentário para não deixar esquecer e fazer crer em sua concretude de pedras que se erguem no meio do existir humano. Foi lá que eu conheci o eco.
Por muito tempo eu achei que era só um sonho, invenção de uma memória de criança que mistura amigos imaginários, livros, fábulas, histórias ao redor da fogueira e coisas acontecidas, tudo num mesmo saco sem fundo. Lembro do carro parando na beira da estrada, uma marajó quase dourada, uma daquelas cores alegres e malucas com as quais se costumavam pintar os carros nos anos 80 no Brasil. Mas a marajó também era barco, caravela, nave espacial, ônibus, submarino, casa e cavalo. Desci da embarcação, marejada de um mar revoltoso, parei no acostamento, os pés melecados de barro e poeira enfiados numa havaiana amarela.
O coraçãozinho parou de bater, assustado do barulho que o vento fazia e de não ver o fundo do buraco à minha frente. Lembro do som do vento, lembro como se fosse ainda agora que o tivesse ouvido, porque só havia ele no mundo, se levantava do fundo das crateras rochosas e subia até o céu, que naquele dia era bem azul. Dominava tudo e todos, ficamos em silêncio, eu acho, guardando uma reverência sincera pela força que a natureza demonstrava. Um vento muito forte gritava desde sua morada para o resto do mundo.
Chamava Buraco do Vento, paramos para olhá-lo num dia em que viajávamos para ser felizes nas férias. Meu pai contou a história daquele lugar e nós ficamos ali de olhos arregalados, jogando pedras para não as ver chegar ao fundo, a lugar nenhum, para desaparecer no encanto mágico de rochas avermelhadas e plantas de caatinga. A alegria de conhecer pela primeira vez um lugar encantado de verdade, não era mentira de livro nem de televisão, era ali mesmo, embaixo dos meus pés e dentro dos meus ouvidos. O vento cantava.
Há muito tempo, quando o vento cantava e os homens entendiam seu canto, houve naquele buraco encantado uma cidade de verdade, com gentes, com igreja e uma praça, com feira e festa de largo. O nome desse lugar já se perdeu da memória de todo mundo, mesmo de quem me contou essa história. O nome encantado foi se apagando das bocas de quem contava e dos ouvidos de quem ouvia, até se perder por completo. Mas a sua existência ainda é empurrada para frente, no dizer de quem conta.
Havia a praça e a igreja com campanário alto, sino de bronze, tinha rua calçada de pedra, casas caiadas com portas coloridas e janelas sempre abertas, flores nos jardins e árvores de fruta em todos os quintais. Tinha um povo feliz e festas de padroeira animada, uma feira grande que se derramava pela rua principal uma vez na semana e atraía gente de toda a região, vinha gente até de Ribeira do Pombal para comprar lá. Era um lugar de mulheres bonitas e moços galantes, crianças felizes e cavalos garbosos.
Mas houve uma chuva que durou quarenta dias e quarenta noites sem parar e arrasou toda a cidade. Dizem que foi depois de um caso de amor não correspondido, que o moço perdeu a compostura e roubou uma donzela de casa. Outros dizem que foi bem ao contrário, que foi um amor como nunca se viu e os noivinhos fugiram juntos para os confins dos judas viver uma história que não se contou jamais. Ou que foi depois de uma seca que parecia perene, depois que um desses coronéis sanguinários quis subjugar a cidade inteira, depois que uma mulher casada se consumiu de um amor que não pôde realizar jamais, depois que inventaram de mexer no curso do rio por isso ou por aquilo.
A bem da verdade, quem conta escolhe como contar. Se foi isso ou aquilo, nunca se saberá ao certo, mas certo mesmo é que choveu sem parar até que a cidade inteira desaparecesse e um rio brotasse em seu lugar, lavando as pedras, moldando valas, desaparecendo até com as casas mais sólidas. Sobrou apenas de testemunho um pedaço da fundação de alguma coisa que dizem foi uma igreja, a casa da donzela, dos amantes, do coronel… E o vento tomou conta de tudo, terminou de esculpir o que a água começou e até hoje quem passa lá ouve uma música que conta minunciosamente a história dessa cidade. Mas acontece que agora, o vento canta e os homens já não entendem suas palavras.