“Vejo uma esquizofrenia entre, por exemplo, o projeto econômico e os bolsões de reacionarismo de costumes e de políticas sociais, ambientais e culturais. A meu juízo, esse será o grande teste pelo qual passaremos como nação”. A opinião é do economista sergipano Otaviano Canuto, que foi vice-presidente e diretor executivo do Banco Mundial, diretor executivo do FMI e vice-presidente do BID.
Nesta entrevista exclusiva, ele analisa como positivo o saldo da Operação Lava Jato no combate à corrupção, vê como necessária a reforma econômica para sanear a relação entre setores público e privado, apesar de que a “agenda do Paulo Guedes não será suficiente, porque não está devidamente acompanhada em áreas como educação e meio ambiente”, e considera baixo o risco do Brasil ser contaminado pelas manifestações de protesto que acontecem em outros países da América do Sul.
Otaviano Canuto é um membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente do Brookings Institute e diretor do Center for Macroeconomics and Development, em Washington. Ele também foi secretário de Assuntos Internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp.
MC — Em 2017, o senhor fez uma palestra no Tribunal de Contas de Sergipe, sobre o impacto da corrupção na economia brasileira, quando destacou que a Operação Lava Jato poderia afetar positivamente o desempenho econômico do Brasil. Qual a avaliação que o senhor faz hoje dessa relação?
OTAVIANO CANUTO — Ainda acho que a Operação Lava Jato, apesar da revelação de procedimentos não exatamente dentro do figurino de comportamento adequado no lado judicial, teve um saldo positivo em termos de mudar a relação custo-benefício no cálculo criminal quanto à corrupção no país. Ficou incompleta porque a imperfeição institucional no país — assim como a escala do problema — não permitiu equidade no tratamento a criminosos, com muitos escapando. Contudo, nem acho que os resultados parciais tenham sido incorretos, nem acho que depois dela o cálculo decisório em relação a entrar em atividades ilícitas de corrupção deixará de levar em conta que os riscos — as probabilidades — de captura e punição são agora mais elevados. Cabe, porém, lembrar que progressos também podem retroceder.
MC — O ministro Paulo Guedes é muitas vezes “acusado” de querer implantar um modelo econômico neoliberal no país. O Brasil precisa de um choque de capitalismo? Até que ponto?
OTAVIANO CANUTO — Venho dizendo há bastante tempo que o Brasil vem sofrendo de uma combinação de anemia de produtividade e obesidade no setor público, com os dois problemas agravando um ao outro. Há necessidade de passar a limpo a relação entre setores público e privado, em busca de mais eficácia nos resultados do que faz o primeiro mediante sua libertação da captura pelo segundo. O setor privado, por sua vez, precisa focar naquilo que subjaz o progresso, que é buscar aumentar produtividade, ao invés de apostar em posicionamento privilegiado perante concorrentes através da captura do setor público. Rótulos como “neoliberal” e similares não ajudam, não por acaso induzindo a que você usasse o termo “acusado” em sua pergunta.
O gasto público estava em trajetória de expansão insustentável e chegou ao limite. O teto do gasto constitui uma camisa de força, não sendo a solução por si só. Mas impôs a realização de reformas estruturais que tornem o gasto público melhor em termos de efeitos sobre a produtividade e de suporte à redução da pobreza. O regime de previdência pré-reforma faz o oposto. A diferença entre salários dos setores público e privado para funções similares também faz dos primeiros um objeto natural de revisão, assim como a extensa lista de subsídios e vantagens fiscais oferecidas pelo setor público sem contrapartida por seus beneficiários no setor privado.
Nosso sistema tributário é complexo e oneroso, ruim portanto a não ser para a malta que ganha dinheiro operando graças a ele.
O Brasil tem uma economia mais fechada comercialmente que qualquer outro país comparável, o que justifica a busca de programas de abertura comercial.
Capital público está aplicado em certas atividades empresariais em que não precisaria estar e poderia estar sendo empregado em investimentos que complementam, ao invés de substituir, o investimento privado, o que justifica privatizações como meio de corrigir excessos feitos no passado recente.
Agora, chame esse conjunto de mudanças de “neoliberal” ou qualquer outro rótulo, mas não muda o fato de que o padrão anterior chegou à exaustão e um certo retorno do pêndulo no qual o país se moveu em sua história das últimas décadas se faz necessário. A agenda do Paulo Guedes não será suficiente, porque não está devidamente acompanhada em áreas como educação e meio ambiente.
MC — O senhor vê risco do Brasil ser contaminado pelas manifestações de protesto que acontecem em outros países da América do Sul, a exemplo do Chile?
OTAVIANO CANUTO — Vejo como baixo nesse momento por um simples motivo. De certa maneira, os movimentos de rua em 2013 clamavam por melhora na qualidade dos serviços públicos, associando isso em grande medida ao ataque à corrupção. As manifestações de protesto em cada um dos países da América do Sul têm coisas em comum, como a grita contra a desigualdade e uma frustração com o quadro econômico que, na região toda, se seguiu ao fim do ciclo de commodities. No caso brasileiro, pioneiro nessa lista, uma mudança política ocorreu, embora, é claro, as vozes da rua possam vir a manifestar mais uma vez sentimentos de insatisfação caso o resultado da mudança lhes apareça como frustrante. Mas o tempo para tal ainda não foi longo o suficiente, especialmente se a penúria em termos de desemprego e queda de renda for mitigada com a tênue recuperação econômica em curso.
MC — Com o governo Bolsonaro dando seguidas demonstrações de desapreço pela democracia, o senhor teme o acirramento do autoritarismo no Brasil? Ou acha que os poderes e as instituições estão suficientemente sólidos e têm resistido bem a essa tentação?
OTAVIANO CANUTO — Temo, sim. Mais que demonstrações de desapreço, preocupo-me com possíveis atos. Vejo uma esquizofrenia entre, por exemplo, o projeto econômico e os bolsões de reacionarismo de costumes e de políticas sociais, ambientais e culturais. A meu juízo, esse será o grande teste pelo qual passaremos como nação.