Santo Souza está vivo e conta, em versos espantados, a saga de deuses, caos, céus e infernos, revisitando os anais dos tempos míticos e místicos. Tomando Ésquilo e Dante como citações criadoras, o poeta refaz sua aventura órfica, conduzindo as multidões de mortos às portas de Cérbero, o grande monstro (cão de três cabeças, encantado com a música de Orfeu, seduzido pelo bolo de mel de Enéas, enfim subjugado e acorrentado por Hércules) que vigia a entrada ao inferno, onde todos choram suas angustias. Os quatro belos cantos de Ésquilo na tormenta é uma expressão de arte poética, lapidada no universo da língua, como uma ourivesaria capaz de surpreender, a cada verso, pela forma, pela linguagem, e também pelos eventos motivadores, garimpados pela alquimia do poeta, nas fontes universais da cultura humana.
Santo Souza tem intimidade com as cosmogonias gregas e convivência com deuses e personagens que contam, com seus símbolos, as tramas, com seus valores, desde o caos (a terra) até a história, ladeando as narrativas com os sentimentos e as sensações que a vida humana conquista na sua experiência. Toda a obra santosouseana é um quadro fiel do seu entendimento, mesclado, sempre, por contribuições pinçadas em muitas leituras clássicas, religiosas, e filosóficas. Por mais de meio século, se é que a poesia pode ter medida, o poeta habitou um mundo emblemático, contido no mapa da terra, marcado por idades e transições, povoado por divindades, heróis, gente e bichos fabulosos, que cravaram na alma dos povos as mais caras tradições, com as quais se faz a interface que é o espelho do tempo.
Ésquilo (525-456 a.C.) inventou a tragédia, como poeta, e recolheu para suas obras parte do repertório circulante na Grécia do seu tempo. Cantou a Guerra dos sete chefes, os persas, a saga de Orestes, filho de Agamenóm, fez o tratado de honra à hospitalidade, relatando a chegada das filhas de Dânao à Argólida e ungiu com suas palavras as correntes de Prometeu, que tinha roubado o fogo para animar a vida do homem, por ele mesmo formado, com o limo da terra. Diz a tradição que o velho Ésquilo, com sua calva, não suportou o peso de uma tartaruga que desabou sobre sua cabeça, quando uma águia a deixou cair. No tempo de sua vida, corria uma estória, que mais tarde inspirou Esopo e os outros fabulistas, de uma tartaruga – Kambugriva –, que habitava um tanque, e era amiga de dois cisnes – Sankata e Vikata – que diariamente lhe contavam estórias de Devarxis e Maharxis, e que ao por do sol voltavam para os seus ninhos. Com o passar do tempo e a falta de chuvas, o tanque começou a secar. Aflitos, os cisnes disseram da sua preocupação a tartaruga, sugerindo mudá-la de lugar. E assim foi feito. Os cisnes trouxeram corda e bastão, para transportar a tartaruga ao seu novo tanque, mas ao ouvir o rumo das aldeias, surpreendidas com seu vôo, ela falou, soltou o bastão e caiu, e foi devorada pelos cidadãos. Tal estória, uma das muitas contidas no Panchatantra – velhíssimo livro com cinco séries de contos – adaptada aos interesses catequéticos e às lições morais, corre no Brasil e é conhecida como A Festa no Céu, tratando de um cágado que foi a uma festa no céu, escondido na viola de um urubu e que descoberto foi jogado céu abaixo, sendo salvo por Nossa Senhora, e seria por isto que o cágado tem a carapaça toda remendada.
Dante ( 1261-1321) fez uma epopéia cristã – A Divina Comédia – visitando o Inferno, o Purgatório e o Céu (Paraíso), reforçando a mística em torno dos três cenários para a vida e a morte dos seres humanos. E refez, na Torre da Fome, o drama de Ugolino, que preso na torre roeu o crânio do seu algoz Ubaldini, como uma vingança. Mais do que as impossibilidades do amor com Beatriz, que lhe serviu de guia, Dante mostrou-se cético nos embates do bem e do mal.
Com Ésquilo e com Dante, Santo Souza ilustra sua poesia, a um tempo órfica, a um tempo trágica, configurando as nuances de várias tragédias, como uma citação epigráfica, incidental, mas com força de referencia, abrindo o texto à compreensão dos leitores, certamente tomados de surpresa com “o riso, o choro, a indiferença de Deus”, “o canto de agonia do mar” morrendo em suas mãos, a decomposição dos elementos, a desconstrução da história.
Santo Souza jamais conformou-se com a perda da imortalidade, da infinitude do ser, com a morte (e com todas as formas de mortes em vida) e sempre intenta arquitetar, com seus sortilégios, as tormentas, “furações”, “terremotos de águas”, tornando mais difusa a trilha dos caminhantes da história. Com ele a poesia adquire uma elegância sem precedentes na língua portuguesa, e dá ao Brasil um sotaque diferenciado, com o qual resmunga sua dor de solidão, chora seu pranto, mas vinga-se com a visão apocalíptica do futuro.
Sergipe, sempre pátria de filósofos, tem em Santo Souza um eremita perdido dos tempos mais distantes do mundo mítico, escrevendo sob o firme desenho de sua presença, na posição astrológica que, um dia, Justiniano de Melo e Silva fixou como uma das portas do inferno, não no sentido da casa do mal, mas como confluência de onde sairiam as mais definitivas revelações sobre a vida humana na terra. Nova luz sobre o passado (Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1906) é um livro instigante, um apanhado de mitos, lendas, fragmentos lingüísticos, e tantos outros cacos que ficaram como sobreviventes, como enigmas, a desafiar como a esfinge, quem ousasse revelar a verdade, como o fez Édipo, de Laio e Jocasta, diante da porta de Tebas.
Apesar de tratar de fatos e situações, deuses e personagens fossilizados pela pátina da história, Santo Souza escreve um poema novo, fundido na sua oficina de mago, como se continuasse a perseverar na busca da chave reveladora. Na forma, nada igual, que possa competir no torneio da linguagem, cuja textura toma o leitor por inteiro, no êxtase da consciência passionalizada pela adesão aos motes que dão consistência à poesia de Esquilo na tormenta, e desde antes, com Ode Órfica, Pentáculo do Medo, Âncoras de Argos, essencialmente contidos na Construção do Espanto.
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