Catálogo do Conto Popular Brasileiro

Foi formalmente apresentado em Laranjeiras, durante o XXXI Encontro Cultural, o Catálogo do Conto Popular Brasileiro, organizado por Bráulio do Nascimento. É uma obra maestra, a primeira em língua portuguesa, reunindo farto material coletado, em todo o País, por diversos pesquisadores, a partir da Segunda metade do século XIX, quando alguns autores, como o maranhense Celso de Magalhães, o cearense José de Alencar e o sergipano Silvio Romero, se lançaram na busca das manifestações artísticas e culturais dos brasileiros. Celso de Magalhães publicou em jornais recifenses romances da tradição ibérica, que estavam, aquela época, na boca do povo; Alencar coletou romances de vaqueiros, chamando a atenção para um ciclo nacional; e Silvio Romero, de forma mais ampla, reuniu romances, contos, quadras, folguedos, danças, festas religiosas e populares. Outros autores fizeram recolha, aumentando o número de estórias guardadas pelo povo brasileiro, especialmente no Nordeste.

As coleções ibéricas foram confrontadas, como matrizes transpostas e em uso no Brasil. O livro Contos e estórias de proveito e exemplo, de Gonçalo Fernandes Trancoso, editado pela primeira vez em 1575, passou a ser uma referência, a ponto de todo o universo de contos populares ser identificado como “estórias de Trancoso” ou “contos de Trancoso”. A quantidade e a variedade das estórias, com suas variantes, exigiam uma classificação que organizasse o acervo, disperso pelas coleções, ou ainda guardados na memória popular. Faltava um Catálogo, de língua portuguesa, que pudesse estabelecer a tipologia do conto popular brasileiro. E foi isto que se propôs fazer Bráulio do Nascimento, um acreditado crítico, com grande experiência na interpretação dos fenômenos da literatura popular e um pesquisador íntimo dos catálogos internacionais.

A tarefa de Bráulio do Nascimento ampliava, na verdade, seu próprio projeto de mapeamento da cultura popular, iniciado com a elaboração da Bibliografia do Folclore Brasileiro, publicado pela Biblioteca Nacional, nos anos 1970, e continuado com os estudos sobre o romanceiro e sobre o conto popular, com os quais o autor se fez presente nos conclaves do folclore brasileiro, como o próprio Encontro Cultural de Laranjeiras. O livro, Catálogo do Conto Popular Brasileiro, que levou muitos anos em processo de organização, finalmente foi publicado pela UNESCO/ IBECC – Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura, em parceria com a editora Tempo Brasileiro, do Rio de Janeiro.

Bráulio do Nascimento visitou Lió, em Aracaju, logo após o XXXI Encontro Cultural de Laranjeiras
Na sua apresentação do Catálogo, em Laranjeiras, no último dia 7 de janeiro, Bráulio do Nascimento repetiu o itinerário do seu trabalho, evocou os pioneiros da coleta folclórica no Brasil e manifestou seu apreço por Sergipe e pelos sergipanos, de quem ouviu versões singulares de contos universais, citando Lió (Leocádio Matias dos Santos), nascido no município de Neópolis, foguista de fábricas de tecidos, em São Cristovão, em Neópolis e em Aracaju, ajudante de pedreiro, na capital sergipana, hoje com 94 anos, de quem guarda a maior admiração, tanto pela quantidade, como pela qualidade das estórias que o velho contador premiou suas platéias. Bráulio do Nascimento, que fez a exegese das coletas de Silvio Romero e de Jackson da Silva Lima, colheu, diretamente de Lió, uma versão do Polifemo, na qual os personagens se valeram da mesma estratégia contida na versão de Homero, no Canto IX da Odisséia. Um achado, que tanto valoriza o pesquisador, quanto o portador da versão e, por extensão, o povo que mantém nos seus guardados contos que o tempo não apagou da memória e nem do uso oral.

Sergipe entra com outros exemplos no Catálogo de Bráulio do Nascimento. O pesquisador Jackson da Silva Lima forneceu diversas versões de contos que recolheu de vários informantes e que formam o corpus de sua imensa pesquisa, infelizmente ainda sem publicação. Concorri com o Catálogo com o conto Medo Grande e Medo Pequeno, que ouví de Desidério Oliveira, de 82 anos, em Cedro de São João, também nas margens do velho Chico. Trata-se de um conto ausente das antologias ibéricas. Nenhuma versão na Espanha, nem em Portugal, nem na Europa.  Apenas três ou quatro, se muitas, no resto do mundo, conhece-se uma, de 1953, no México. A raridade do conto Medo Grande e Medo Pequeno (Big Fraid and Little Fraid) numerado 1776A pelo Catálogo de Aarne-Thompsom, aponta para a riqueza de Sergipe, em matéria de folclore. Uma riqueza que Laranjeiras estandartiza, anualmente, desde 1976.

O Catálogo do Conto Popular Brasileiro, que consumiu décadas de paciente pesquisa, cotejo, confrontação, dá a Bráulio do Nascimento um papel extraordinário, além do pionerismo de organizar o primeiro documentário, de tipos e motivos, do conto popular, em língua portuguesa. A apresentação, em Laranjeiras, carrega o símbolo de uma presença do autor, sempre contribuindo com seus lúcidos esclarecimentos, ajudando a que os Encontros Culturais sejam verdadeiras escolas, traçando um novo rumo para as pesquisas e os estudos do folclore e da cultura popular do Brasil.

Catálogo do Conto Popular Brasileiro, de Bráulio do Nascimento, é, em si, um atestado de maturidade e de autonomia científica, feito para dar marca à narrativa popular que tem circulado no País, sem prejuízo de outras narrativas orais, com as quais todos os dias os brasileiros encenam, nas ruas das grandes cidades, as suas próprias tragédias, contando estórias rápidas, com as quais espera vencer as suas próprias dificuldades. Quando alguém encontrar pela rua um homem, ou uma mulher, que conta um fato – perda de dinheiro, necessidade de comprar remédios ou uma passagem para voltar para casa – que não torça o nariz. Ao contrário, ouça com atenção, recolha e guarde, porque no futuro tais estórias formarão um patrimônio social de literatura popular, tão grande, diversificado e rico como aquele de tradição ibérica, que agora ganha seu Catálogo.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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