Chuva de sangue e outros prodígios

Os repertórios culturais dos povos incorporam, ao longo do tempo e da história, registros e relatos de fatos, que ganham cargas simbólicas e terminam valorados pela convivência social. Não há, ainda, uma ciência dos arquétipos, ou mesmo um método que possa interpenetrar nos corpus científicos e esclarecer certos fenômenos que escapam à compreensão literal dos grupos sociais. Gilberto Freyre, com sua genialidade interpretativa de historiador, andou tomando por empréstimo afirmações da antropologia, da psicologia social, da sociologia, mas nunca se deu por satisfeito, e até apresentou a idéia de uma ciência nova – a Tropicologia -, ou ciência do homem situado, ou do homem em suas circunstâncias naturais, para completar sua tarefa de exegeta da formação do povo brasileiro.

A sociedade brasileira, multiétnica, e culturalmente mestiça, tem um repertório imenso que guarda como depositário fiel, e que remete à fontes antigas, notadamente as medievais, como se fosse possível abarcar e guardar a memória do mundo. Para os brasileiros, acostumados ao cotidiano da vida rural e urbana, tais fenômenos transitam naturalmente, como se fossem próprios, ainda que eles contenham idéias e símbolos que se agregam a interesses que não são, absolutamente, da gênese brasileira, mas que se ligam, intima e profundamente, ao projeto de religiolização das comunidades, que se apóia no magistério moral das igrejas.

A chuva tem sido, no nordeste do Brasil, um desejo permanente que implica na potência fertilizadora, como recorre em muitas partes do mundo antigo. Rezas, promessas, procissões, tudo vale no contato preferencial das pessoas com as divindades, santos e intercessores, na mediação do sofrimento que a falta de chuvas impõe. É muito recente a idéia de que o regime de chuvas decorre de certas e determinadas situações climáticas, que repercutem na região nordestina, classicamente estiada, algumas vezes madrastamente seca, o que significa dificuldades de sobrevivência, fome, morte, desesperança, êxodo da terra.

Muitas crenças, simpatias, costumes velhos se repetem nos períodos mais longos e difíceis das estiagens. No meio delas fala-se em tipos de chuva que os antigos denominavam de prodígios, fatos extraordinários fixados na crônica dos povos. Fala-se em “chuva vermelha”, atribuindo a cor às águas do rio Jordão, evaporadas no leito sagrado e lançada como chuva, em várias partes da região nordestina e também em Sergipe.

Em Lagarto os mais velhos ainda guardam a tradição de “Chuva vermelha”, de “chuva de peixe”, de “chuva de pedra”, e de outras “chuvas”, incluindo aí a “chuva de estrelas.” O céu exerce um fascínio próprio a tudo o que é desconhecido. A relação das pessoas com o céu vai além dos olhares curiosos sob o teto estrelado, que protege a curiosidade. Relâmpagos e trovões já exerceram, sobre o povo, forte temor, como sons e luzes inseparáveis. Meteoros, cometas, restos de asteróides encheram de surpresa os olhos de pessoas nas noites nordestinas e sergipanas. Antes que a ciência revelasse, um a um, cada fenômeno, a imaginação foi enriquecida de suposições e estas guardadas e transmitidas pelas gerações.

No livro Cronologia del mondo (Cronologia do Mundo), de Fracesco Sansovino, editado em Veneza, na Itália, em 1580, há vários registros de prodígios, atravessando o tempo. Dividido em várias idades, o livro reúne fatos inusitados, desde o ano 790 antes de Cristo, quando um cordeiro falou diante dos egípcios.

E seguiram-se outros casos: no ano 241 aC é um boi que fala, em Roma, nas proximidades do grandíssimo Colosso de Rhodes; em 46 aC, depois da morte de César, um boi falou.  Entre os anos de 367 e 1578 depois de Cristo, vários relatos aparecem no livro de Sansovino. Em 367 cai do céu, perante os Atrébates (povo da Gália) uma chuva de lã; em 586 nasce, nas margens do rio Nilo, um animal macho e fêmea, com formas humanas; em 748, na Mesopotâmia (atual Iraque) um burro fala; em 1094 há um sinal maravilhoso na terra, nas estrelas, no sol e na lua, e um cometa horrível como a morte; em 1314 três luas aparecem no céu ao mesmo tempo; em 1456 nasce, em Sabina, antigo País da Itália, cenário do rapto das sabinas, um vitelo (novilho) com duas cabeças; em Roma chove sangue e ma Ligúria, também na Itália, cai carne do céu; em 1464 registra-se que uma mulher pariu um cão, em Brescia, na Itália, e outra um gato, em Pavia, também na Itália; em 1492 cai do céu um seixo (pedra), em tempo belo e sereno, próximo do Castelo de Alsatia; em 1501 apareceu no céu da Alemanha uma cruz de sangue; em 1512 nasceu em Ravena, na Itália, um monstro macho e fêmea, com um corno na cabeça e tendo um pé só; em 1514, em Vitemburgo, na Alemanha, apareceram  no céu três sóis, e uma espada com uma cruz marcada de sangue. Nas portas da Universidade de Vitemburgo (Witemberg), Martinho Lutero iria afixar, três anos depois, em 1517, as proclamações contra as indulgências, que mudaram a história do cristianismo; em 1519 uma trave (barrote) de fogo, com arco celeste, surge no céu, perto de Viena, sobre a Torre de Santo Estéfano, e  uma cruz no sol e outra na lua, de maravilhosas cores; em 1538 um homem armado aparece no céu, em diversos lugares da Alemanha, enquanto uma estrela de infinita grandeza se parte em raios e uma cruz sanguínea é vista; em 1544 chove sangue no céu do Condado da cidade de Monastério (Münster), na Alemanha; em 1553, na Alemanha, várias pessoas assistiram folhas de árvores gotejarem sangue; e em 1560 choveu sangue em Fossano, acompanhada de fogo no ar e do aparecimento de três cometas no céu do lugar.

Tais registros, abonados pela longevidade do livro Cronologia del mondo atestam as sobrevivências brasileiras de fatos incomuns, que povoam a memória das comunidades subalternas, mantidas na fé e no devocionário transposto pelos colonizadores e outros personagens presentes na vida brasileira. Aí está, então, um roteiro de fontes, de matrizes, que ajudam a identificar a origem da cultura popular, com seus emblemas, como a chuva de sangue.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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