Cidade: esta panela vai explodir

Cidade: esta panela vai explodir

 

Antes, quero pedir licença para me desculpar pela minha ausência, quando passei um bom período sem postar novos testemunhos neste espaço, que tanto me dá satisfação em dispor. Não foi tão por querer. Passei por uma sequência de pequenos problemas de saúde, o que me causou cisma, desconfiança e crença em bruxas, mas que o tempo me fez elucidar que não passa de cansaço. Cansaço de que? De nada, em especial. Talvez eu seja como um carro velho – 1965 – , rodando na estrada por muito tempo, sem parar pra fazer uma revisão, nem mesmo trocar o óleo. As peças entram em estado de fadiga, e qualquer buraco a mais, “plaft”, quebram. Nem bruxas, nem nada, fadiga. Oficina, então, vira rotina.

Bem certo que o cigarro contribui muito, mas deste estou me afastando, com dor, como quem deixa uma amante maravilhosa, mas que lhe faz mal ao coração – ao pulmão, ao rim, ao fígado, aos ossos, ao corpo todo. Não sou de beber de maneira inveterada, nunca fui, meus amigos sabem disso. Se um dia já fui de adentrar pela madrugada, apenas pela boa conversa e pelo violão, hoje, salvo exceções, adormeço antes do apresentador do Jornal Nacional dizer “boa noite”. Herança genética de meu pai, acho.

Mas, como dizem, não há mal que não traga um bem. Foi deste cansaço que minha cabecinha viajante, que não sossega para tomar um cafezinho, fez-me compreender, com muita lucidez, algo que já é tão debatido, tão óbvio e evidente, mas que me veio com uma força de clarividência nunca antes sentida. Vou relatar, começando por um fato.

Num dia de sol, eu estava dirigindo, em trânsito lento, quando fiquei a observar uma imagem publicitária postada no vidro traseiro de um ônibus. Em bom desenho colorido, uma imagem do campo, verde, uma estrada de terra que leva a uma casinha simples, uma varanda, uma porta, duas janelas. Parei. O som dos automóveis cessou. O barulho da rua eu não ouvia mais. Segui por aquela estrada, entre as árvores, senti o cheiro do mato, até chegar na varanda da casa. Fiquei ali, por uns tempos, paraliticamente.

Uma buzina estridente trouxe-me de volta. O verde, agora, era do sinal de trânsito, aberto, indicando que a boiada de gente teria que prosseguir, cada qual para os seus destinos, e, eu, o trapalhão, atrapalhando o mundo de seguir o seu destino, porque parei pra pensar e, sabemos, quem quiser pensar que pense em movimento, porque a humanidade tem pressa, eu tenho pressa, senão não conseguirei manter o meu cotidiano e a comida na minha mesa. Olhei, segui, a minha casa de campo já ia longe, no vidro do ônibus que levava outra boiada para os seus cotidianos.

Passei o dia incomodado, tentando desviar meu pensamento de um turbilhão de questionamentos, e, graças, o costume hipnótico do dia-a-dia me fez cumprir as minhas metas. Venci. Consegui ser o operário que tenho que ser, fiz-me satisfeito, gosto de trabalhar. Não sou um ruralista, sou um burocrata da comunicação. É o que eu aprendi a fazer.

Em casa, questões de volta, incômodo de volta, fiz o que faço quando estou diante de um tema a refletir: pesquisa. Esta é a minha mania. Antes, não foi difícil, já havia intuído que a  aflição que me levara a viajar para uma casa de campo instalada em um vidro de ônibus seria decorrente das angustias que devam sofrer os moradores de grandes regiões urbanas. Pimba!  Acertei. Será isso que especialistas chamam de stress urbano? Aracaju não é uma das maiores cidades, mas já apresenta, mesmo que em menor escala, as agruras e mazelas das grandes metrópoles.

Cidade. Desde que o homem deixou de ser nômade, na sua natureza de ser um animal sociável, que a tendência tem sido a de se organizar e de se aglomerar em espaços compartilhados. Esta convergência, somada a fenômenos relacionados com o desenvolvimento das civilizações, fomentou o aparecimento das grandes metrópoles e de uma forma de organização que gera, cada vez mais, a necessidade de se conviver com substratos inerentes e exclusivos dos grandes centros urbanos. Processo natural do desenvolvimento da humanidade? Resultado do aprimoramento dos conhecimentos e da racionalidade do homem? O homem escolheu este caminho? A concentração urbana incide em uma melhor qualidade de vida? Pelo que clama a natureza humana?

É fato que vivemos a disputar um espaço cada vez menor. O crescimento das populações nas cidades não é acompanhado por um desenvolvimento sustentável que dê suporte a esta inflação humana. No Rio de Janeiro, por exemplo, de acordo com o IBGE, os favelados passaram de 7,13 % da população, em 1950, para 17,57%, em 1991.

Eu não moro em uma favela. Faço parte da casta mais privilegiada. Eu moro em uma prateleira – a 9ª prateleira, contando de baixo para cima. A minha prateleira é cercada por diversas outras. Privilegiado que sou, por uma fresta – entre prateleiras – vejo o rio Sergipe, poluído, um dos deságues dos excrementos dos moradores de Aracaju. O que fazer? Dizem que o custo para resolver este problema é muito alto. E haja poluição… É poluição atmosférica, poluição sonora, poluição visual. E haja problema… É o desemprego, a submoradia, a violência, a fome, a escassez da escola pública, insuficiência dos serviços populares de assistência médico-hospitalar, falta de transportes coletivos e de infra-estrutura urbana, como pavimentação, luz, água e coleta de esgotos. Não falo de Aracaju, especificamente. Falo de qualquer centro urbano. Quem se deparar com as obras do geógrafo Milton Santos, ou do arquiteto Eduardo Neira Alva, vai ter uma visão melhor do caos ao qual me refiro.

Formigueiro louco este nosso. Estamos nos colidindo, atropelando e sendo atropelados, contagiando e sendo contagiados, assassinando e sendo assassinados. Não nos suportamos. Estamos nos encontramos todos os dias – não sempre com tanto prazer -, criamos a dependência um dos outros, e essa dependência convive lado a lado com a disputa pelo espaço, em todos os sentidos. Disputamos um lugar para morar, um lugar para transitar, um lugar para trabalhar. Disputamos a melhor cadeira no cinema, a melhor fruta na feira, o lugar na fila, o melhor salário, o cliente, o emprego.

Como roga na cartilha do capitalismo, a disputa impulsiona o desenvolvimento. Esta mesma cartilha associa o desenvolvimento à disponibilização de elementos da modernidade urbana. Cidade desenvolvida é cidade que tem ruas asfaltadas, shopping center, outdoor digital, cash eletrônico, serviço de TV a cabo, internet banda larga, além de tantas outras “necessidades” do homem urbano. A casa de campo do vidro do ônibus é símbolo de local que o desenvolvimento ainda não chegou. Serve somente para passar alguns finais de semana, ou para fazer propaganda de margarina.

Quero me dedicar a estudar melhor as cidades e o processo de urbanização. Até agora somente tenho a intuição de um psicótico urbano: eu. Esta coisa toda vai explodir. Urbanização é um desvio da humanidade (nem acredito que eu estou dizendo isso sem a menor base teórica). É verdade que grupos de pessoas residentes em grandes metrópoles – como Nova Iorque, por exemplo – já se organizam em cooperação, compram grandes lotes de terra em campos florestais, e se mudam para sempre. Para mim é a borrachinha da panela de pressão que está querendo saltar, senão a panela explode. Outros, ficam assim, como eu, hipnotizados, trabalhando para manter a panela estável e viajando para casas de campo instaladas em vidros de ônibus.

Um pedido: ao leitor que tenha uma casa de campo, por favor, empreste-me, ao menos por um final de semana. É sério.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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