(Nos 70 anos de Cleomar Brandi, 18 de janeiro, vale compartilhar a apresentação do seu livro de crônicas, "Os Segredos da Loba", de 2009, texto escrito por este articulista)
A palavra “tem artimanhas e esquinas”, como o próprio diz, mas para o baiano Cleomar Brandi são como as dobras de Aracaju, cidade por ele amada certamente mais do que qualquer outra no mundo e que percorre e visita os seus recônditos com a sapiência de poucos.
Graças ao estilo muito próprio, suas palavras têm cheiro, têm cor, ora dão água na boca, ora são nauseabundas. Não estarei cometendo nenhuma heresia se afirmar que as crônicas de Cleomar são pequenos poemas em prosa, à Charles Baudelaire.
Engraçado que sendo o grande jornalista que é, Cleomar soube se imunizar da frieza da palavra jornalística, que não é estéril, mas reta, objetiva e dura, e consegue ser cronista com tanto refinamento poético.
“A palavra dormita solene em prateleiras vetustas e escancara gargalhadas amareladas nos velhos cordões ensebados das feiras livres do semi-árido”. Alguém ousou buscar comparativo melhor para apontar onde a palavra está e deve ser buscada?
Aliás, no seu exercício ético diário, Cleomar prega que o jornalista deve “ao acordar, pautar a verdade. Ao dormir, editá-la”.
O refinamento poético de Cleomar é o tempero que ele aplica, assim como a devida dose de sofrimento, a algo maior que é o pano de fundo de tudo o que faz e escreve: a preocupação social. Ele é um cavaleiro andante a apontar sua lança afiada para as desigualdades desse mundo fútil e materialista, na eterna e utópica busca da justiça.
A preocupação com a exploração do homem pelo homem é uma temática recorrente e, certamente, resulta nos melhores textos. Veja-se o “Estatuto da fome”, um triste e rascante libelo contra o poder que exclui e a desigualdade entre os homens.
“Fica decretado o fim dos ágapes governamentais. A palavra ‘banquete’ será excluída do dicionário e apenas será permitida como um sonho de um tempo em que o pão não soube ser repartido coma dignidade e respeito que o ser humano merece”.
No mesmo diapasão, Cleomar canta a desesperança do sertanejo — “Na beira da BR, repousa quieto o homem sertanejo. Sentado na sua lassidão ele coça a frieira e olha para esse mundo de meu Deus. Imóvel, é parte da paisagem árida” — e a esperança frustrada das meninas desonradas — “Casulos rompidos pela maldade dos homens e pelo estigma da velha chaga social”.
Mas nem tudo está perdido. Como um arauto das boas novas, ele canta, calcado na própria experiência política, a certeza de que alguma coisa está mudando. “A luminosa trajetória da minha vida derrubou dinastias, rompeu velhos grilhões, fragmentou ditaduras e rompeu estruturas calcinadas pelo fogo fátuo dos velhos vícios mantidos por anos, décadas de inconsciência política e desmandos”, concluindo altivo: “Sou um filho do meu tempo e exijo respeito!”
Mar e música. Nada, a não ser a própria vida, Cleomar adora mais senão a profundidade das notas musicais e a vastidão do mar. Tecendo alegorias sobre o que ama, ele fantasia que o som da percussão afro e o balanço das ondas atlânticas são capazes de propagar a pureza e limpar a sujeira atávica do poder. Amante da negra musicalidade brasileira, deseja que um imenso bloco de carnaval carregue para bem longe os males do mundo.
“Afinem os tamborins e soltem o verbo em busca do samba-enredo que acalme a violência urbana e as balas de AR-15 que atravessam as noites cariocas em busca do cidadão que volta cansado do trabalho!”
Igualmente arrebatado pelo mar, ele torce para que, na maré de março, “o velho Netuno abra os olhos raivosos e provoque ondas gigantescas e direcionadas e carregue para o mais abissal do esquecimento e da punição exemplar os que manhosamente teceram falcatruas quando detinham o poder ou se avizinharam dele com a intenção guardada de burlar a lei e enriquecer seus cofres em contas estrangeiras!”
E não se pode esquecer que o guerreiro Cleomar Brandi não vive e não rega o seu jardim poético sem a referência feminina. “A mulher, quando é resolvida, fruta maturada, sabe ter a esperteza da loba e sabe sobreviver sem matilha”. O que é isso senão versos de um poema de amor àquela a quem ele dedica tudo o que possui de erótico e sensual?
Cronista, ele nunca perde o olhar sobre o cotidiano, é livre e está sempre a serviço da liberdade. Como diz Affonso Romano de Sant’Anna, o cronista é o mais livre dos redatores de um jornal. “Ele pode ser subjetivo. Pode (e deve) falar na primeira pessoa sem envergonhar-se. Seu ‘eu’, como o do poeta, é um eu de utilidade pública”.
Cleomar Brandi é um bem público, um patrimônio que deve ser preservado e cultuado. Este livro certamente resume o pensamento desse monumento vivo e andante. As crônicas aqui publicadas interferem no cotidiano a qualquer tempo, porque não são datadas. São para serem lidas em todo momento, na ordem que melhor agradar, consumindo-se o livro a partir do cheiro da capa, do textinho da orelha ou abrindo-o aleatoriamente, no livre folhear, página indeterminada. Ler Cleomar é prazeroso toda vida.