Competências federativas na prevenção ao COVID-19

Não obstante o rápido consenso a que chegaram a Organização Mundial da Saúde e os diversos países do mundo (mesmo aqueles inicialmente resistentes) quanto à necessidade de medidas de isolamento social (em alguns casos chegando ao extremo da quarentena geral) para prevenção ao COVID-19, no Brasil a questão virou problema político-institucional grave que opõe, de um lado, o Presidente da República, que abertamente prega a desnecessidade das medidas de isolamento (contrariando as próprias orientações técnicas do Ministério da Saúde) e de outro lado Governadores e Prefeitos (para além do conjunto da sociedade civil) que têm não só defendido como determinado, em decretos específicos em seus âmbitos, a adoção de medidas preventivas de isolamento social, tais como suspensão do funcionamento de bares, restaurantes, academias, do comércio em geral, shoppings, cinema, teatro, casas noturnas, atendimento ao público em agências bancárias, cultos e missas, entre outras [todas voltadas à redução da circulação de pessoas e o contato propício ao contágio].

Trata-se de excelente oportunidade para abordarmos, aqui, a repartição constitucional de competências entre os entes federativos envolvendo a temática da saúde pública.

A saúde é um direito fundamental social. Direito de todos e dever do Estado (tomado aí em seu sentido amplo, de Poder Público nacional), conforme determina a Constituição Federal:

 

Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (grifou-se).

 

Como o Brasil é uma República Federativa, formada pela união indissolúvel de Estados, Municípios e Distrito Federal (Art. 1º, caput), todos autônomos nos termos estabelecidos pela Constituição (Art. 18, caput), as responsabilidades jurídicas são distribuídas por todas as esferas federativas dentro do que se denomina de “repartição de competências”, que inclui as competências da União (Arts. 21 e 22), dos Estados (Art. 25, § 1º), dos Municípios (Art. 30) e do Distrito Federal (Art. 32), além das competências comuns a todos eles (Art. 23) e das competências legislativas concorrentes da União e dos Estados (Art. 24).

Pois bem, no caso da saúde pública, a Constituição determina ser dever de todos os entes federativos cuidar, como competência comum:

 

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

[…]

II – cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência; (grifou-se)

 

Em sendo matéria de competência comum, a mesma Constituição impõe a organização de um Sistema Único de Saúde, com prioridade para as atividades preventivas:

 

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III – participação da comunidade. (grifou-se)

 

Com efeito, são bem definidos os papéis do Sistema Único de Saúde:

 

Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei:

I – controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos;

II – executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador;

III – ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde;

IV – participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico;

V – incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento científico e tecnológico;

VI – fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumo humano;

VII – participar do controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos;

VIII – colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho. (grifou-se)

 

A Lei nº 8.080/90 especifica as áreas de competência das esferas federativas dentro do Sistema Único de Saúde. Embora tenha atribuído à direção municipal do SUS a execução de serviços de vigilância epidemiológica e de vigilância sanitária (Art. 18, inciso IV, alíneas “a” e “b”), a mencionada lei não isenta as direções estaduais do SUS de atuação nessas áreas, impondo-lhes a prestação de apoio técnico e financeiro aos Municípios e execução supletiva de ações e serviços de saúde (Art. 17, inciso III) e a coordenação (e em caráter suplementar, a execução) dos serviços de vigilância epidemiológica e de vigilância sanitária (Art. 17, inciso IV, alíneas “a” e “b”), como também não isenta a direção nacional do SUS, ao impor que a ela cabe a definição e a coordenação dos sistemas de vigilância epidemiológica e de vigilância sanitária (Art. 16, inciso III, alíneas “c” e “d”) bem como a coordenação e a participação na execução das ações de vigilância epidemiológica (Art. 16, VI), assim também prestar cooperação técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para o aperfeiçoamento de sua atuação institucional (Art. 16, XIII) e ainda executar ações de vigilância epidemiológica e sanitária em circunstâncias especiais, como na ocorrência de agravos inusitados à saúde, que possam escapar do controle da direção estadual do Sistema Único de Saúde-SUS ou que representam risco de disseminação nacional (Art. 16, parágrafo único).

Essa competência comum e ao mesmo tempo responsabilidade solidária dos entes federativos no cuidar da saúde pública tem sido reafirmada constantemente na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

No julgamento do Recurso Extraordinário nº 855.178/SE, o STF assentou:

 

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. DIREITO À SAÚDE. TRATAMENTO MÉDICO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERADOS. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. REAFIRMAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA.

O tratamento médico adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado, porquanto responsabilidade solidária dos entes federados. O polo passivo pode ser composto por qualquer um deles, isoladamente, ou conjuntamente. (grifou-se)

 

Ao rejeitar embargos de declaração, o STF assentou a tese de repercussão geral nº 793, isso em 23/05/2019:

 

Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro (grifou-se).

 

Ao mesmo tempo, em se tratando de competências comuns, em que todos os entes federativos compartilham dessas atribuições, devendo compor um sistema articulado e organizado para o cumprimento integrado dessas tarefas, cada ente federativo possui autonomia para adotar as medidas que entendem necessárias, em seus âmbitos, na garantia da saúde pública.

Não a toa, em recentíssima decisão monocrática que perpassou a temática das medidas de prevenção ao COVID-19, o Ministro Marco Aurélio assentou que medidas adotadas pela União não afastam medidas a ser adotadas pelos Estados e Municípios:

 

A cabeça do artigo 3º sinaliza, a mais não poder, a quadra vivenciada,  ao referir-se ao enfrentamento da emergência de saúde pública, de importância internacional, decorrente do coronavírus. Mais do que isso, revela o endosso a atos de autoridades, no âmbito das respectivas competências, visando o isolamento, a quarentena, a restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou aeroportos de entrada e saída do País, bem como locomoção interestadual e intermunicipal.

[…]

Há de ter-se a visão voltada ao coletivo, ou seja, à saúde pública, mostrando-se interessados todos os cidadãos. O artigo 3º, cabeça, remete às atribuições, das autoridades, quanto às medidas a serem implementadas. Não se pode ver transgressão a preceito da Constituição Federal. As providências não afastam atos a serem praticados por Estado, o Distrito Federal e Município considerada a competência concorrente na forma do artigo 23, inciso II, da Lei Maior.

[…] a disciplina decorrente da Medida Provisória nº 926/2020, no que imprimiu nova redação ao artigo 3º da Lei federal nº 9.868/1999, não afasta a tomada de providências normativas e administrativas pelos Estados, Distrito Federal e Municípios.

Defiro, em parte, a medida acauteladora, para tornar explícita, no campo pedagógico e na dicção do Supremo, a competência concorrente. (grifou-se) [decisão monocrática do Ministro do STF Marco Aurélio na ADI 6341 MC/DF, em 24/03/2020].

 

Portanto, em maior ou menor grau, todas as esferas federativas que compõem o SUS (União, Estados, Municípios e Distrito Federal) possuem deveres e responsabilidades com a saúde pública, e é de todas elas que devem ser cobradas atuações administrativas eficazes, preventivas e de assistência, que sejam capazes de assegurar efetivamente o direito à saúde como elemento fundamental da dignidade da pessoa humana.

O ideal, nessa crise da pandemia global do coronavírus, é que todos os entes federativos atuem solidariamente de modo articulado e coerente; mas, não havendo essa coesão (como as reiteradas movimentações públicas do Presidente da República Jair Bolsonaro sugerem), Estados e Municípios têm autonomia constitucional para atuar e tomar as medidas que, em seus âmbitos, avaliem necessárias e adequadas para a garantia maior da saúde de todos.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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