Comprador de histórias

– Me conta uma história – sorria amigável.

– Como? – o outro assustou-se e, embora tenha ouvido todas as palavras corretamente, não entendeu mesmo foi o significado subjetivo do que se iniciava.

Estava no sinal de trânsito, malabares, bolas, roupas chamativas e chapéu no final. Juntando um trocado pra seguir a viagem. Arrumou os dreads e encarou o outro, incerto.

– Me conte uma história e lhe dou um dinheiro – fez uma viseira com a mão para poder encarar melhor o rapaz que o admirava incrédulo. – É como uma venda, sabe? Você me conta e lhe dou um dinheiro.

Ele permanecia incrédulo. Claro, nesses anos rodando estrada, vivendo na rua, trabalhando nos semáforos e nas ruas dos lugares mais impossíveis já tinha conhecido todo tipo de maluco possível, mas aquilo era novidade. A pele branca se avermelhava sob o sol forte e o suor escorria empapando as roupas de algodão grosso. Sorriu, por fim, e apontou um canto embaixo da árvore onde podiam sentar-se no canteiro entre os carros que passavam indiferentes na cidade apressada.

O outro aceitou o gesto como um convite e sorriu de volta. Também suava embaixo daquele sol inclemente, a barba pinicava com as gotas de suor que brotavam e lhe escorriam pelo rosto, pelas costas, a camiseta de malha grudada no corpo. Parecia mais velho que seu interlocutor, os cabelos já começam a branquear, embora fosse difícil dizer exatamente quantos anos tinha.

– Mas me explique direito, que acho que ainda não entendi… Vender uma história? Que história? Como é isso? – sentaram-se cada um sobre uma pedra de calçamento largada ali no canteiro.

– Você me conta, eu escuto. Eu lhe pago no final, e a história fica sendo minha. Pra sempre.

– Sua? – a rua é o lugar de todos os malucos mesmo! repetia de si para si.

– Sim, minha. Vai ficar na minha memória e sair da sua, fazer parte de mim e deixar de ser sua. Pra sempre – enfatizou com um sorriso sedutor. – E então, que história quer me entregar?

Ele achou divertido, algo poética aquela conversa sem pé nem cabeça nem rabo. Resolveu embarcar naquela viagem, porque acreditava fielmente no destino e nas impossibilidades da vida.

– Pois, está bem, desde que me dê o direito de uma pergunta.

– Ok. Primeiro a história, depois a pergunta.

Sorriu divertido com tudo de inusitado que a rua lhe trazia. As pessoas são mesmo muito ótimas! Cada uma tem seus próprios multiversos cheios de loucuras e amores. Pensou de qual história queria se livrar. O que entregaria para nunca mais ser seu. Talvez uma história muito dolorida, talvez uma coisa sem importância. Ficou com uma ponta de medo, porque eram todas aquelas coisas que ele vivera que o faziam ser quem era. Se livrar de quê? E se fosse uma mentira?

Foi num natal, quer dizer, na véspera, era de tarde, estávamos todos na casa da minha avó, a família inteira lá, acho que era 1987 ou 88, eu tinha lá meus cinco ou seis anos. Éramos muitos primos, tias, tios, aquele cheiro bom de comida sendo feita vindo lá da cozinha, tinha os vizinhos também, os amigos todos da gente. A casa da minha avó era o ponto de encontro dos que tinham família longe, dos que não tinham família, as portas sempre tavam abertas e sempre tinha comida pra mais um, ela sempre foi muito generosa, bem vó mesmo, sabe?! Não sei bem o que aconteceu lá na cozinha, mas teve uma hora que minha avó decidiu que toda aquela comida que estavam lá preparando não ia ser suficiente pra gentarada que ela tava esperando e que precisava matar uma guiné, uma galinha d’angola, sabe?! Eu tava perto da porta da cozinha nessa hora, tentando roubar algum pedaço de comida boa, ela mirou os olhos direto em mim, veio na minha direção e saiu me puxando pelo braço casa a dentro. Entramos no quarto dela, eu tropeçando nas pernas, ela decidida me puxando, tirou uma espingarda velha de dentro do guarda-roupa e me entregou. “Tome, vá lá nos fundos e me mate uma guiné”. Eu fiquei lá parado com aquela coisa nas mãos, sem saber direito o que fazer. “Vá, menino, que galinha dessas só se mata com bala, que ninguém consegue pegar as bicha. Vá, aproveite pra treinar sua pontaria que é ruim que dói”. Lembro das palavras exatas dela, falou rindo, troçando de mim. E eu fiquei lá com o coração aos pulos, quase morrendo de medo. Era medo de matar a galinha, de errar, de os meninos mangarem de mim, era tanto medo junto que eu quase chorei. Mas fui, né?! Tinha que ir. Minha vó morava num sítio pequeno, no meio da cidade, tinha um galinheiro lá no fundo, eu fui caminhando pra lá com a espingarda pesando uma tonelada nas minhas mãos e um cortejo de primos atrás de mim. Um deles, um que era mais meu amigo, ficou do meu lado, me ajudando a fazer aquilo, porque ele sabia que minha pontaria era a pior de todas, e eu nunca tinha atirado em nada vivo, só em lata e garrafa. Eu era muito menino, sabe?! Os primos tavam todos calados atrás de mim, na expectativa do que ia ser aquilo, todo mundo apreensivo demais, e eu suando muito, morrendo de medo. Não sei bem como aconteceu, porque já faz muito tempo, mas eu mirei numa que tava bem paradinha lá no fundo do galinheiro e apontei pra ela e atirei. Um estampido, meu ouvido ficou zumbindo, o coice da espingardinha me doendo o ombro, os meninos todos gritaram, bateram palmas, aí eu botei a chorar. E como eu chorei! Parecia um bebê… Nem fui pegar a galinha lá morta, a galinha que eu tinha matado… Eu me senti a pior criatura da face da terra… Nem sei lhe explicar qual é a sensação disso… De matar, sabe?!

Ficaram em silêncio, cada um sentindo aquela história. O que contara sentia mesmo que se despedia daquela lembrança, entregando-a ao outro com algum saudosismo de sofrer uma morte tão criança. E o outro ia se tornando dono do sentir trágico, da primeira morte, primeiro assassinato, um nó crescendo no peito. Abriu a carteira e puxou uma nota de cinquenta reais. A história tinha lhe tocado profundamente. O que a vendera pegou a nota e sorriu agradecido.

– Falta ainda a pergunta, lembra?

– Pois faça.

– Por que você quis comprar uma história minha?

Sorriu prevendo já aquela pergunta. Endireitou-se como pôde sentado na pedra:

– Eu compro histórias, vou pelo mundo catando as memórias dos outros, na esperança que chegue um dia a lembrança que vá ser maior e mais forte que as minhas, que eu vá apagando o que eu quero apagar. Um cheiro que substitua o cheiro que eu lembro, um gosto que substitua o gosto que eu lembro… Uma memória que já não seja mais o meu lembrar sofrido. Um antídoto pra essa doença que é a memória. E você é um homem das ruas, vocês sempre têm boas histórias pra contar – sorriu, mas era um riso triste.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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