Edmilson Menezes
Doutor em filosofia e professor universitário
Estou cada vez mais convicto de que a ignorância é a grande protagonista das várias “discussões” políticas vigentes no cenário nacional. Tomo, aqui, o termo ignorância como sinônimo de desconhecimento; porém, o faço numa acepção bastante prismática, a saber: o fato de desconhecer algo acaba gerando uma lacuna que, por conta de sua própria condição, permite, muitas vezes, ser preenchida de modo arbitrário. Quando desconheço algo e não tenho o menor impulso para suprir essa falta por mim mesmo, acabo, por preguiça, covardia ou impotência, recorrendo ao entendimento de outrem. O filósofo alemão Immanuel Kant escreveu a esse respeito num pequeno texto chamado O que é o Esclarecimento? Acreditava que um homem é esclarecido quando sai da sua menoridade, isto é, da incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a origem dela não se encontra na ausência de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Segundo o autor, é preciso ter coragem de fazer uso do próprio entendimento. A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos homens, depois que a natureza de há muito os emancipou de uma direção estranha, continuem, no entanto, de bom grado, menores durante toda a vida. São também as causas que explicam porque é tão simples que os outros se instituam em tutores deles. É tão fácil e cômodo ser menor. Não tenho necessidade de pensar, quando posso simplesmente valer-me de outra consciência que por mim pensa e se encarregará da administração dos negócios desagradáveis.
Essa meditação kantiana não cessa de vir à minha mente quando presencio, hoje, entre nós brasileiros, o uso do termo comunismo. Ele deixou de ser um conceito para se tornar uma espécie de “dardo” desferido todas as vezes que os argumentos falham! Explico-me. Falta probidade intelectual ao debate político que dele se serve. O atual governo, a altíssima hierarquia do Executivo, e seus apoiadores querem fazer crer aos ignorantes que vivemos uma “guerra santa” entre eles e o comunismo. Para tudo o que não dá certo no governo (e não é pouca coisa!), bem como para o que eles acreditam estar certo, a explicação termina passado por uma referência à palavra comunismo. Ora, sejamos sérios! Comunismo no Brasil? Aventar algo histriônico como isso é, para além da desonestidade política e do cinismo, um retumbante desconhecimento do que seja comunismo.
Com efeito, os conceitos têm história; e no caso do conceito em tela ele não foi (pasmem!) criado pelo Partido dos Trabalhadores, nem pela Venezuela, tampouco pela China, sequer pode a eles ser associado sem discussão, como o discurso politizante censurável quer fazer crer aos desinformados. Comunista, é tudo o que o PT, a Venezuela e a China não foram, não são, e nunca serão. A ideia, fundamental para a compreensão da história política recente, nasce com o filósofo alemão Karl Marx, que entende o comunismo como “a reintegração do homem, seu retorno a si mesmo, a superação da alienação do homem”, como “a abolição positiva da propriedade privada, da alienação humana e, dessa forma, como a apropriação real da natureza humana através do homem e para o homem” (Manuscritos econômicos e Filosóficos, terceiro manuscrito). A partir dessa acepção, o comunismo surge como um movimento político da classe operária presente na sociedade capitalista e como uma forma de sociedade que a classe trabalhadora criaria com sua luta.
De acordo com Bottomore, no seu Dicionário do pensamento Marxista, durante a segunda metade do século XIX, os termos socialismo e comunismo passaram a ser usados geralmente como sinônimos na designação do movimento da classe trabalhadora, embora o primeiro fosse muito mais usado. Marx e Engels seguiram esse uso até certo ponto e não faziam grande objeção nem mesmo à expressão social-democrata, adotada como designação por alguns partidos socialistas, notadamente os dois maiores, na Alemanha e na Áustria. Somente após 1917, com a criação da Terceira Internacional (Comunista) e de partidos comunistas empenhados em conflito com outros partidos da classe operária, o termo comunismo adquire de novo um sentido bem distinto, semelhante àquele que tinha por volta de meados do século XIX, quando foi contrastado, como uma forma de ação revolucionária visando à derrubada violenta do capitalismo, com o socialismo enquanto movimento constitucional e mais pacífico de reformas progressivas. Subsequentemente – e em particular durante o período do stalinismo – o comunismo veio a ter um outro significado, o de um movimento liderado por partidos autoritários, em que a discussão aberta da teoria ou da estratégia política marxista fora suprimida, e caracterizado por uma subordinação mais ou menos total dos partidos comunistas de todos os outros países ao partido soviético. É neste sentido que o comunismo pode agora ser visto como um movimento político característico do século XX, que foi amplamente estudado e criticado não só por opositores do marxismo, mas por muitos marxistas.
Como se pode depreender, estamos diante de um termo complexo que não pode, ao ignorar a história, ser vulgarizado ao sabor de interesses grupais, tampouco ser atribuído, sem mais, a partidos e países que, para ficarmos apenas em dois exemplos, jamais pensaram em abolir a propriedade privada e a exploração dos trabalhadores, apesar de recorrerem a discursos de inspiração marxista. Aliás, ignorar a história vem sendo a especialidade do Brasil dirigido pelo atual grupo, ao qual quando se lhe pergunta o nome bem se pode responder: legião. O desprezo pela história leva a uma incapacidade de elaboração do passado, quer dizer, a uma inaptidão para o esclarecimento, a um desvio da maioridade. O aprendizado da elaboração do passado manifesta-se como um antídoto contra a lacuna deixada pela ignorância e incentiva o indivíduo a fazer uso do seu próprio entendimento. A memória, o tempo e a lembrança são liquidados, de forma deliberada, pela própria sociedade arrogante e brutal (e pelo poder por ela eleito); ela insiste em deixar aqueles que sustentam materialmente suas elites num torpor lacunar, jazem incapazes de conhecer a história de um conceito. Dessa maneira, tal sociedade difunde, de forma adjetiva, o comunismo como um xingamento, um aleive, um anátema apontado a todo aquele que não comunga com seus ideais autoritários. Dirigindo os holofotes para uma inapropriada assimilação de um conceito, as classes dirigentes também desviam o foco daquilo que fundamentalmente interessa à nação. Esse expediente é deveras antigo! Confundem-se os espíritos, retiram-lhes o direito ao conhecimento daquilo que foi pela história acumulado, verdadeiro manancial para o pensamento. Enquanto isso… a “boiada passa”!